quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O número 3 em José Matias e Os Maias de Eça de Queirós

No conto José Matias, percebe-se uma insistência no número três. Coincidência? Pode ser, mas considerar-se-á a outra possibilidade.
Assim, como aponta Núnez, são três narradores, sendo um o narrador introdutor e mais dois secundários; são três carruagens que acompanham o caixão; são três anos que José Matias passa espreitando o apontador de Obras Públicas, três anos que vive encafuado no portal negro; o narrador cita por três vezes que durou dez anos um enlevo (do amor entre as personagens), o qual ocorre logo depois que Matias e Elisa se conhecem; são três parceiros ligados à carne, à sexualidade, que Elisa tem no decorrer do conto: o Miranda, o Nogueira e o apontador de Obras Públicas; também pode ser percebido um triângulo amoroso entre José Matias, o apontador de Obras Públicas (no final do conto, sendo no começo e no meio os outros dois, perfazendo a mesma função) e Elisa; são três textos citados pelo narrador: Defesa da Filosofia Hegeliana, As Origens do Utilitarismo e Ensaio dos Fenômenos Afetivos.
Será tudo mera coincidência? O número três tem seu simbolismo. Pode-se comparar este número com uma marca; este é um elemento somente do nosso tempo recente, enquanto o homem sempre soube o que é o número três, mesmo sem ter uma linguagem que pudesse descrevê-lo; portanto, é um símbolo universal que está impresso em nosso inconsciente.
É um número importante nas religiões: no cristianismo tem-se a trindade (pai, filho e espírito santo), na qual todas as pessoas são a mesma; no hinduísmo, outra trindade, formada por Brahmã, Vishnú e Shiva. Nos contos de fadas é um número recorrente (junto com o sete).
Por conseguinte, não é esperado que esse número seja usado conscientemente, ou seja, não necessariamente Eça de Queirós colocou o número de propósito no conto, mas provavelmente o fez de modo inconsciente (salienta-se aqui não se pretende pensar na análise do sentido pretendido pelo autor, mas dos possíveis sentidos expostos no texto).
Conforme Jung, segundo a alquimia a tríade denota um estado de oposição, “na medida em que uma tríade sempre pressupõe uma outra”. Nessa oposição se busca o equilíbrio. Ora, no conto tem-se a oposição entre um amor espiritualizado e um materializado. E o equilíbrio não está em Elisa? Elisa é aquela que ama espiritualmente José Matias, mas não deixa de lado os prazeres da carne, pois passa a se relacionar com outros três homens.
O conto corrobora tal hipótese no seguinte excerto: “o amor espiritualiza o homem — e materializa a mulher” — e aqui se marca a dualidade homem e mulher; espiritualidade e materialidade — “Essa espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista; mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada”. Nota-se o advérbio “também”: Elisa é materializada, mas também espiritualizada; logo, ela é o equilíbrio.
Desse modo, tem-se por um lado os três parceiros de Elisa e as três fases de José Matias, as quais podem ser percebidas pelas mudanças de comportamento da personagem: na primeira fase, como é recorrente nas narrativas, a personagem é apresentada pelo narrador em seu ambiente natural para depois aparecer o motivo de conflito (Elisa).
Lê-se que Matias nunca tinha “um rasgão brilhante na batina! Nunca uma poeira estouvada nos sapatos! Nunca um pelo rebelde do cabelo ou do bigode fugido daquele rígido alinho que nos desolava!” e que “leu sem palidez ou pranto as Contemplações; permaneceu insensível ante a ferida de Garibáldi”. Assim, o narrador afirma que ele parece ter uma grande superficialidade sentimental.
Na segunda fase, temos a mudança desse personagem, que deixa de ser considerado coração de esquilo; momento em que ele conhece Elisa, a qual é o motivo dessa mudança. José Matias ainda se preocupa com sua aparência, pois, em um momento em que Elisa passeava no terraço da casa da Parreira, “toda a sua atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola e do amicto, para se acercar do altar”.
Na terceira fase, temos a decadência, em que Matias gasta a herança de seu tio Garmilde em jogos e bebidas. Sua aparência piora, conforme o narrador informa: “estendido numa poltrona, com o colete branco desabotoado, a face lívida descaída sobre o peito, um copo vazio na mão inerte, o José Matias parecia adormecido ou morto”. No entanto, mesmo depois de se tornar um “mendigo”, seu amor por Elisa continua.
Portanto, apesar de não ser evidente no conto, mas sutil, pode-se dividir o comportamento de José Matias em três fases. Em suma, na primeira não ama Elisa (já que não a conhece) e cuida de si, na segunda ama e cuida de si e na terceira ama e não cuida adequadamente de si (o que o leva à morte).
Por conseguinte, o conto José Matias, narrado por um suposto filósofo, parece se configurar como um tratado sobre o equilíbrio entre o amor carnal e o espiritualizado. Dois dos homens que casam com Elisa morrem, o que indica que não tiveram uma vida longa, fazendo com que ela os substitua. José Matias também morre. Portanto, entre os que possuem esse amor exposto no texto, seja espiritualizado ou materializado, a única que continua viva do início até o fim do conto é Elisa, a qual também é a única personagem exposta com esse equilíbrio.
Em Os Maias, como percebe Gasques, o tempo da narrativa se estende por três gerações: D. Afonso, Pedro e Carlos e de cada um há certa narração pormenorizada de uma divisão temporal: infância, velhice e juventude. Gasques, depois de elogiar bastante o romance, aponta que existe um triângulo obscuro envolvendo D. Afonso e D. Maria Eduarda Runa: sem explicações para o leitor, D. Afonso acolhe em casa D. Ana Silveira, dando-se a conhecer por viscondessa:
“Então Vilaça apressou-se a perguntar pela sra. Viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Afonso, que no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casara com um fidalgote […] depois, viúva e pobre, Afonso recolhera-a por dever de parentela, e para haver uma senhora em Santa Olávia” (Os Maias. p. 50).
Em sequência, tem-se o triângulo amoroso entre Pedro da Maia, Maria Monforte e seu amante italiano, motivo da separação do casal e dos filhos. Na terceira geração, Carlos Eduardo, ainda estudante de medicina, tem sua primeira amante: Carlos “terminou por se enredar num episódio romântico com a mulher dum empregado do governo civil, uma lisboetazinha, que o seduziu pela graça dum corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes” (Os Maias, p. 79).
Ao final dos estudos, continua Gasques, Carlos consegue uma segunda amante: uma espanhola prostituta chamada Encarnación. Aqui tem-se um triângulo com Teresinha, a namoradinha de infância que Carlos deixara em Santa Olávia. Formado, Carlos encontra sua terceira amante, “uma senhora holandesa, separada de seu marido” (Os Maias, p. 81). Porém, logo dá fim a esse relacionamento.
A quarta amante é condessa de Gouvarinho, relacionamento que se mantém até a chegada de Maria Eduarda. E, afirma o autor da tese, eis o triângulo mais dramático da narrativa: Carlos da Maia, Maria Eduarda e Joaquim Álvares de Castro Gomes.
Entre os momentos reveladores em que o número três aparece como pano de fundo simbólico, Eduardo Gasques mostra o momento em que Pedro da Maia é traído por Maria Monforte e abandonado com o pequeno Carlos Eduardo, que resolve falar com D. Afonso, com quem não falava há três anos, pois não aceitava a união com a Monforte. D. Afonso conhece seu neto, Carlos Eduardo, e se inteira que a outra neta, Maria Eduarda, fora levada pela mãe e pelo amante.
E aqui podemos perceber novamente a oposição de duas tríades, das quais de uma podemos conhecer bem apenas as características de Maria Monforte, a qual podemos relacionar ao luxo e à traição; em oposição à outra tríade, que tem moralidade e é a parte traída. Também podemos notar nesta os três períodos: infância, juventude e velhice.
Eduardo Gasques informa que, “na simbologia psicanalítica freudiana, o número três tem significação sexual”, relação que fica evidente nos triângulos amorosos do romance. Como exemplo, podemos lembrar o que se passa entre Carlos da Maia e a condessa Gouvarinho: a libido da condessa, tomada de luxúria, resolve desfrutar desse relacionamento proibido na casa de uma tia, que é santa. Aqui notamos outra oposição, entre santidade e luxúria.
Nessa passagem, é forte a presença do três: “havia três semanas que se encontravam nesse lugar; alguém chama à porta com três argoladas” (Gasques, p. 148).

A condessa tem 33 anos. Para Gasques, esta referência, “além da quase blasfêmia de identificar um ponto comum entre o casto filho de Deus e a lúbrica desenfreada, aponta para a crença de que até essa idade todo o vigor físico e intelectual crescia progressivamente”.

Referências:
GASQUES, Antonio Eduardo Galhardo. A Simbologia das casas em Os Maias e Dom Casmurro, 2007.
JUNG C. G. O Homem e seus Símbolos. Editora Nova Fronteira, 1964.
_____. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 2002.
Queiros, Eça de. José Matias. Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/eca11.pdf Acesso: 14-09-2015, 18:51.
_____. Os Maias. São Paulo: Martin Claret, 2006.
NÚÑES Juan Paredes. José Matias de Eça de Queirós – Tentativa de descrição estrutural, 1985.

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