No conto José Matias, percebe-se uma insistência no número três.
Coincidência? Pode ser, mas considerar-se-á a outra possibilidade.
Assim, como aponta Núnez, são três narradores, sendo um o narrador
introdutor e mais dois secundários; são três carruagens que acompanham o caixão;
são três anos que José Matias passa espreitando o apontador de Obras Públicas,
três anos que vive encafuado no portal negro; o narrador cita por três vezes
que durou dez anos um enlevo (do amor entre as personagens), o qual ocorre logo
depois que Matias e Elisa se conhecem; são três parceiros ligados à carne, à
sexualidade, que Elisa tem no decorrer do conto: o Miranda, o Nogueira e o
apontador de Obras Públicas; também pode ser percebido um triângulo amoroso
entre José Matias, o apontador de Obras Públicas (no final do conto, sendo no
começo e no meio os outros dois, perfazendo a mesma função) e Elisa; são três
textos citados pelo narrador: Defesa da Filosofia Hegeliana, As Origens do
Utilitarismo e Ensaio dos Fenômenos Afetivos.
Será tudo mera coincidência? O número três tem seu simbolismo. Pode-se
comparar este número com uma marca; este é um elemento somente do nosso tempo
recente, enquanto o homem sempre soube o que é o número três, mesmo sem ter uma
linguagem que pudesse descrevê-lo; portanto, é um símbolo universal que está
impresso em nosso inconsciente.
É um número importante nas religiões: no cristianismo tem-se a trindade
(pai, filho e espírito santo), na qual todas as pessoas são a mesma; no
hinduísmo, outra trindade, formada por Brahmã, Vishnú e Shiva. Nos contos de
fadas é um número recorrente (junto com o sete).
Por conseguinte, não é esperado que esse número seja usado
conscientemente, ou seja, não necessariamente Eça de Queirós colocou o número
de propósito no conto, mas provavelmente o fez de modo inconsciente (salienta-se
aqui não se pretende pensar na análise do sentido pretendido pelo autor, mas dos
possíveis sentidos expostos no texto).
Conforme Jung, segundo a alquimia a tríade denota um estado de oposição,
“na medida em que uma tríade sempre pressupõe uma outra”. Nessa oposição se
busca o equilíbrio. Ora, no conto tem-se a oposição entre um amor espiritualizado
e um materializado. E o equilíbrio não está em Elisa? Elisa é aquela que ama
espiritualmente José Matias, mas não deixa de lado os prazeres da carne, pois passa
a se relacionar com outros três homens.
O conto corrobora tal hipótese no seguinte excerto: “o amor
espiritualiza o homem — e materializa a mulher” — e aqui se marca a dualidade
homem e mulher; espiritualidade e materialidade — “Essa espiritualização era
fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente
espiritualista; mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa
ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trêmulos e
embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada”. Nota-se o advérbio
“também”: Elisa é materializada, mas também espiritualizada; logo, ela é o
equilíbrio.
Desse modo, tem-se por um lado os três parceiros de Elisa e as três
fases de José Matias, as quais podem ser percebidas pelas mudanças de
comportamento da personagem: na primeira fase, como é recorrente nas
narrativas, a personagem é apresentada pelo narrador em seu ambiente natural
para depois aparecer o motivo de conflito (Elisa).
Lê-se que Matias nunca tinha “um rasgão brilhante na batina! Nunca uma
poeira estouvada nos sapatos! Nunca um pelo rebelde do cabelo ou do bigode fugido
daquele rígido alinho que nos desolava!” e que “leu sem palidez ou pranto as
Contemplações; permaneceu insensível ante a ferida de Garibáldi”. Assim, o
narrador afirma que ele parece ter uma grande superficialidade sentimental.
Na segunda fase, temos a mudança desse personagem, que deixa de ser
considerado coração de esquilo; momento em que ele conhece Elisa, a qual é o
motivo dessa mudança. José Matias ainda se preocupa com sua aparência, pois, em
um momento em que Elisa passeava no terraço da casa da Parreira, “toda a sua
atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para
prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com
que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola
e do amicto, para se acercar do altar”.
Na terceira fase, temos a decadência, em que Matias gasta a herança de
seu tio Garmilde em jogos e bebidas. Sua aparência piora, conforme o narrador
informa: “estendido numa poltrona, com o colete branco desabotoado, a face
lívida descaída sobre o peito, um copo vazio na mão inerte, o José Matias
parecia adormecido ou morto”. No entanto, mesmo depois de se tornar um
“mendigo”, seu amor por Elisa continua.
Portanto, apesar de não ser evidente no conto, mas sutil, pode-se
dividir o comportamento de José Matias em três fases. Em suma, na primeira não
ama Elisa (já que não a conhece) e cuida de si, na segunda ama e cuida de si e
na terceira ama e não cuida adequadamente de si (o que o leva à morte).
Por conseguinte, o conto José Matias, narrado por um suposto filósofo,
parece se configurar como um tratado sobre o equilíbrio entre o amor carnal e o
espiritualizado. Dois dos homens que casam com Elisa morrem, o que indica que
não tiveram uma vida longa, fazendo com que ela os substitua. José Matias
também morre. Portanto, entre os que possuem esse amor exposto no texto, seja
espiritualizado ou materializado, a única que continua viva do início até o fim
do conto é Elisa, a qual também é a única personagem exposta com esse
equilíbrio.
Em Os Maias, como percebe Gasques, o tempo da narrativa se estende por
três gerações: D. Afonso, Pedro e Carlos e de cada um há certa narração
pormenorizada de uma divisão temporal: infância, velhice e juventude. Gasques,
depois de elogiar bastante o romance, aponta que existe um triângulo obscuro
envolvendo D. Afonso e D. Maria Eduarda Runa: sem explicações para o leitor, D.
Afonso acolhe em casa D. Ana Silveira, dando-se a conhecer por viscondessa:
“Então Vilaça apressou-se a perguntar pela sra. Viscondessa. Era uma
Runa, uma prima da mulher de Afonso, que no tempo em que os poetas de Caminha a
cantavam, casara com um fidalgote […] depois, viúva e pobre, Afonso recolhera-a
por dever de parentela, e para haver uma senhora em Santa Olávia” (Os Maias. p.
50).
Em sequência, tem-se o triângulo amoroso entre Pedro da Maia, Maria
Monforte e seu amante italiano, motivo da separação do casal e dos filhos. Na
terceira geração, Carlos Eduardo, ainda estudante de medicina, tem sua primeira
amante: Carlos “terminou por se enredar num episódio romântico com a mulher dum
empregado do governo civil, uma lisboetazinha, que o seduziu pela graça dum
corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes” (Os Maias, p. 79).
Ao final dos estudos, continua Gasques, Carlos consegue uma segunda
amante: uma espanhola prostituta chamada Encarnación. Aqui tem-se um triângulo
com Teresinha, a namoradinha de infância que Carlos deixara em Santa Olávia. Formado,
Carlos encontra sua terceira amante, “uma senhora holandesa, separada de seu
marido” (Os Maias, p. 81). Porém, logo dá fim a esse relacionamento.
A quarta amante é condessa de Gouvarinho, relacionamento que se mantém
até a chegada de Maria Eduarda. E, afirma o autor da tese, eis o triângulo mais
dramático da narrativa: Carlos da Maia, Maria Eduarda e Joaquim Álvares de
Castro Gomes.
Entre os momentos reveladores em que o número três aparece como pano de
fundo simbólico, Eduardo Gasques mostra o momento em que Pedro da Maia é traído
por Maria Monforte e abandonado com o pequeno Carlos Eduardo, que resolve falar
com D. Afonso, com quem não falava há três anos, pois não aceitava a união com
a Monforte. D. Afonso conhece seu neto, Carlos Eduardo, e se inteira que a
outra neta, Maria Eduarda, fora levada pela mãe e pelo amante.
E aqui podemos perceber novamente a oposição de duas tríades, das quais
de uma podemos conhecer bem apenas as características de Maria Monforte, a qual
podemos relacionar ao luxo e à traição; em oposição à outra tríade, que tem
moralidade e é a parte traída. Também podemos notar nesta os três períodos:
infância, juventude e velhice.
Eduardo Gasques informa que, “na simbologia psicanalítica freudiana, o
número três tem significação sexual”, relação que fica evidente nos triângulos
amorosos do romance. Como exemplo, podemos lembrar o que se passa entre Carlos
da Maia e a condessa Gouvarinho: a libido da condessa, tomada de luxúria,
resolve desfrutar desse relacionamento proibido na casa de uma tia, que é
santa. Aqui notamos outra oposição, entre santidade e luxúria.
Nessa passagem, é forte a presença do três: “havia três semanas que se
encontravam nesse lugar; alguém chama à porta com três argoladas” (Gasques, p.
148).
A condessa tem 33 anos. Para Gasques, esta referência, “além da quase
blasfêmia de identificar um ponto comum entre o casto filho de Deus e a lúbrica
desenfreada, aponta para a crença de que até essa idade todo o vigor físico e
intelectual crescia progressivamente”.
Referências:
GASQUES, Antonio Eduardo Galhardo. A Simbologia das casas em Os Maias e Dom
Casmurro, 2007.
JUNG C. G. O
Homem e seus Símbolos. Editora Nova Fronteira, 1964.
_____. Os
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 2002.
Queiros, Eça de. José
Matias. Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/eca11.pdf Acesso: 14-09-2015, 18:51.
_____. Os
Maias. São Paulo: Martin Claret, 2006.
NÚÑES Juan Paredes. José Matias de Eça de Queirós – Tentativa de descrição estrutural,
1985.
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