Em “Machado de Assis e o mundo às avessa”, texto sobre “O alienista”, Sergio
Paulo Rouanet mostra sua erudição. No início, após apontar que o conto é um dos
mais complexos de Machado de Assis, cita Freud, mostrando que os sonhos, assim
como a literatura, têm uma hermenêutica aberta.
No segundo parágrafo, cita Augusto Meyer, informando que o crítico
afirmou que o conto é uma espécie de autocaricatura de Machado. O texto
referido é “Na Casa Verde”, no qual Meyer afirma, ao tratar de Machado, que “o
alienista seria o seu autêntico porta-voz, a encarnação do seu pirronismo
niilista e inconscientemente, por outro lado, uma autocaricatura”.
E, então, Rouanet expõe que a razão de Simão Bacamarte “é na verdade a
de um pensamento que comete suicídio”, assim como Augusto Meyer em seu texto.
Além disso, informa que os críticos mais modernos “procuram o sentido do texto
no próprio texto, evitando a nota biográfica.
Percebe-se que a frase em que o autor expõe sobre os críticos é curta, a
que vem em sequência é mais longa, a depois desta é mais longa ainda, terminando
o parágrafo com uma frase mais curta. Desse modo, percebe-se um texto muito bem
construído, o qual dá um ritmo confortável de leitura, não cansando o leitor.
O texto faz uma análise de “O alienista”, expondo que o conto mostra uma
posição contrária à psiquiatria, à ciência e à razão oficial, além de ser
contra as práticas e instituições do poder; movendo-se nos registros cognitivo
e político.
Ao tratar do registro cognitivo, o autor expõe que Machado insiste que
Simão Bacamarte é um grande médico, para quem tudo se subordina à ciência, ao
que começa a fazer um bom resumo do conto, percebendo que Simão Bacamarte
“orientou sua política de internamento segundo duas teorias sucessivas e
contrárias”.
Como nota Rouanet, na primeira teoria os loucos são aqueles que não têm
um perfeito equilíbrio entre suas faculdades. A aplicação desta teoria tem duas
etapas; o autor descreve que na primeira são “internados apenas os
desequilibrados notórios”, reconhecidos como loucos tanto pela medicina como
pelo senso comum. Então, descreve os loucos dessa etapa.
Na segunda etapa da mesma teoria, o autor salienta que, apesar da
loucura continuar sendo definida pelo desequilíbrio das faculdades, esse
desequilíbrio não se manifestava apenas por comportamentos patológicos, “mas por
hábitos que se afastassem da moralidade convencional”. Assim, supersticiosos,
vaidosos, mentirosos, os poetas excessivamente imaginosos (porque suas
metáforas afastam da verdade literal), entre outros, são considerados loucos.
Desse modo, o autor continua seu resumo, mostrando que Martim Brito é
internado por dizer que Deus tinha ultrapassado a si mesmo ao criar D. Evarista
e esta é internada porque só pensava em roupas.
Simão, informa Rouanet, percebendo
que 4/5 da população de Itaguaí fora internada, considera que sua primeira
teoria estava errada, passando a defender que o desequilíbrio era normal e
exemplar. A segunda teoria também passa por dois estágios. No primeiro, os
antigos reclusos são soltos, dando lugar aos novos loucos, que são pessoas perfeitamente
equilibradas. O tratamento era atacar a perfeição moral predominante. A cura
era rápida e a Casa Verde logo ficou vazia.
No entanto, faltava dar mais um
passo na sua teoria: plus ultra, descreve o autor. Com isso, o médico se dá
conta de que havia uma pessoa perfeitamente equilibrada, que era ele. Então,
Simão Bacamarte se interna, o que, para Rouanet, é a única decisão coerente do
médico.
O autor dispara que não há dúvida
que o “Alienista” à psiquiatria e à instituição psiquiátrica. Certamente, o
autor tem razão; podemos também perceber que o conto critica as práticas e
instituições de poder, a ciência e a razão. Como um exemplo do que é afirmado,
pode-se citar o fato de que Simão escolhe sua mulher por causa de suas ancas
largas, não porque era bonita, mas porque queria filhos. Todavia, não tem
filhos. Assim, nota-se que o conto expõe que a ciência falha.
Rouanet defende que Machado estava a
par da literatura sobre psicologia e distúrbios psíquicos, corroborando com
evidências apresentadas. Ademais, o autor demonstra uma leitura pormenorizada
do conto, mostrando relações de “O alienista” com outros textos e elementos.
Desse modo, escreve que Simão
Bacamarte teria tido como inspiração o médico José da Cruz Jobim, senador
conservador que indignara Machado de Assis ao atacar estudantes de São Paulo.
De modo análogo, a Casa Verde corresponderia a uma casa localizada na Praia
Vermelha, “onde ficava o Hospício D. Pedro II”. Já Itaguaí seria o Brasil.
Na sequência do texto, o autor
compara a obra “O Lapso” (1883), a qual apresenta relações com “O alienista”.
Percebe-se que é uma comparação minuciosa e interessante para o leitor, pois
tal obra possui muitos pontos de contato com o conto. Além disso, compara como
o “Conto Alexandrino” e expõe como Machado mostra a loucura em “Memórias
póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”, comparando com “O alienista”,
evidenciando, assim, ser um grande conhecedor das obras machadianas.
O autor também faz uma divisão muito
conveniente de elementos tratados de “O alienista”. Desse modo, reserva um
espaço de seu texto para tratar do político; descreve que os títulos dos
capítulos do conto reproduzem articulações da Revolução Francesa. O capítulo 5
é o Terror, o 6 é a Rebelião e o 10 é a Restauração. Em Paris, a sequência foi
a Rebelião, o Terror e a Restauração.
Para o autor, “a inversão temporal
pode ser uma forma sutil de aludir ao caráter reativo, reflexo, dos movimentos
populares no Brasil, em contraste com a Europa, onde o povo tem um protagonismo
originário [...]”. Nota-se o elogiável cuidado em dizer que a inversão temporal
“pode ser”, não que é.
Segundo Rouanet, “a Casa Verde é um
microcosmo da sociedade exterior”; é uma instituição total, parte de um sistema
de dominação autoritária que abrange toda a cidade, tendo como outras peças
desse dispositivo de poder a Igreja, “representada pelo padre Lopes, a
administração municipal, representada pela Câmara de Vereadores, e a classe dos
proprietários, à qual pertencia o próprio Simão Bacamarte”.
Por conseguinte, o autor nos lembra
que existe uma mescla de discursos, dos quais Simão Bacamarte se apropria para
ter sua autoridade enquanto médico. Este, além da ciência, tem o discurso da
religião para lhe reforçar o autoritarismo. Rouanet critica os Canjicas,
afirmando que são meros arruaceiros, que se subjugam à palavra do alienista, o
qual diz que só presta conta de seus atos a Deus e a seus mestres, sendo estes
a ciência, a razão, etc.
Porfírio é descrito pelo texto de
Rouanet como um demagogo vulgar, que tem retórica vazia; também mostra o
caráter vil da personagem, a qual tem como móvel a sede de poder, o que acaba
alcançando por um tempo. No entanto, trai o povo que o elevara a essa posição.
Expõe o autor que, no registro
cognitivo, o leitor é forçado a concluir que a razão do alienista é louca; e,
perspicazmente, nota que não tem sequer o consolo de idealizar a loucura,
considerando-a um modo de acesso à sabedoria verdadeira.
O mundo às avessas, o qual dá nome ao texto, é
referido como o “antigo topos da cultura ocidental”. Ou seja, era uma inversão
da ordem natural das coisas, onde “os meninos eram mais sábios que os mais
velhos, os lobos fugiam das ovelhas”, etc. Segundo o autor, na origem do duplo
ceticismo, cognitivo e político, transperece em o “Alienista” tal inversão.
Ademais, trata com eloquência sobre “O Elogia da loucura” de Erasmo, defendendo
que este melhor aborda o tema da inversão.
Uma das partes mais interessantes de
seu texto é quando escreve que, se vemos Simão Bacamarte como um louco,
concordamos com o diagnóstico que este faz sobre si mesmo, dando crédito ao seu
autodiagnóstico, mas não podemos dar crédito por vir de um louco, etc. num
regresso infinito. Além disso, o autor também defende que a inspiração do
registro político pode ter vindo de um conto de Edgar Allan Poe.
Por fim, no último parágrafo de seu
texto, escreve que “o mundo às avessas é cíclico e as posições na roda da vida
se revezam continuamente”*.
Referências:
ROUANET,
Sergio Paulo. Machado de Assis e o mundo às avessas. Marta de Senna (Org.). Rio
de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008.