sábado, 11 de junho de 2022

NATUREZA E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR

 

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

 

 

 

 

 

WILLIAM DE TONI TEIXEIRA

 

 

 

 

 

NATUREZA E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PONTA GROSSA

2016

WILLIAM DE TONI TEIXEIRA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NATUREZA E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR

 

 

Trabalho de conclusão de curso apresentado para obtenção do diploma de Licenciado em Letras – Português/Inglês. Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Estudos da Linguagem.

 

Orientadora: Profª. Dra. Déborah Scheidt

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PONTA GROSSA

2016

 

 

WILLIAM DE TONI TEIXEIRA

 

 

 

NATUREZA E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR

 

 

 

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de licenciado em Letras Português/Inglês na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Estudos da Linguagem.

 

 

Ponta Grossa, 12 de dezembro de 2016.

 

 

Profª. Dra. Déborah Scheidt – Orientadora

Doutora em Estudos Literários

Universidade Federal do Paraná

 

 

Profª Dra. Andréa Correa Paraíso Müller

Doutora em Teoria e História Literária

UNICAMP

 

 

Prof. Dr. Daniel Gomes

Doutor em Literatura

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 


 

 

 

RESUMO

 

Este artigo examina as temáticas da natureza e da civilização na obra de José de Alencar, mais especificamente em O guarani. Com intuito de engrandecer os elementos locais, a exemplo do Romantismo europeu, o autor frequentemente associa suas descrições da natureza brasileira a características da cultura europeia, tais como as tradições e rituais da religião católica. Ansiando, também, por destacar os méritos da sociedade brasileira, elevando-os ao mesmo patamar do mundo civilizado europeu, mas ao mesmo tempo, percebendo os danos que a modernização da vida ocidental já estava causando ao meio ambiente, Alencar inspira-se na ordem social medieval para caracterizar seus personagens indígenas. Vêm daí a denominação de “cavalheiro português” dada a Peri e a constante tentativa de hierarquizar tantos os elementos da natureza quanto da civilização brasileira, nos moldes do passado medieval europeu.

 

Palavras-chave: José de Alencar. O guarani. Natureza. Civilização.

 

ABSTRACT

 

This article analyzes themes related to nature and civilization in the works by José de Alencar, more specifically in O Guarani. Inspired by European Romanticism and aiming at praising local elements, Alencar frequently associates his descriptions of Brazilian nature to traits of the European culture, such as the traditions and rituals of the Catholic religion. In his attempt to highlight the merits of Brazilian society by elevating them to European standards, while at the same time perceiving the risks that the modernizing of Western civilization posed to the environment, Alencar finds inspiration in the Medieval social order to characterize his indigenous heroes. That is the origin of the “Portuguese gentleman” designation given to Peri and the constant attempt to hierarchize elements of Brazilian nature and civilization, following the example of the European Medieval past.

 

Key words: José de Alencar. O Guarani. Nature. Civilization.


SUMÁRIO

 

Desenvolvimento...............................................................................................1

Considerações finais.......................................................................................15

Referências......................................................................................................16


Existe, nas obras de José de Alencar, tanto ficcionais quanto críticas, preocupação em retratar a natureza brasileira, além de discutir e questionar como esta deve ser representada. Assim, Alencar critica Gonçalves de Magalhães em uma série de cartas sobre A confederação dos Tamoios, obra em que Magalhães pretendia compor uma autêntica epopeia brasileira. Alencar contesta a epopeia como gênero adequado para exaltar a natureza, como o seguinte trecho da primeira carta publicada expõe:

Filho da natureza embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.

E se tudo isto não me inspirasse uma poesia nova, se não desse ao meu pensamento outros voos que não esses adejos de uma musa clássica ou romântica quebraria a minha pena com desespero, mas não a mancharia numa poesia menos digna do meu país (ALENCAR, 1953, p. 5).

 

Ao ler esse trecho podemos inferir que, para Alencar, é a partir do contato direto com a natureza que o poeta pode alcançar a beleza e a originalidade da poesia, pois as matas brasileiras têm o que o autor denomina de “maravilhas de Deus”, que são os elementos da natureza específicos do Brasil (o nascer do sol experienciado nessas terras, por exemplo); o trecho afirma que são esses elementos da natureza que deveriam inspirar uma poesia nacional.

Em outra carta, destinada a Machado de Assis, referindo-se à floresta da Tijuca, Alencar assevera:

O senhor conheceu esta montanha encantadora. A natureza a colocou a duas léguas da corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão.

Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu azul.

Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hábito celeste do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade do berço (ALENCAR,  1960, p. 932, apud MARINS, 2005, p. 241).

 

Como podemos notar, mesmo em um ambiente urbano, a natureza tem um lugar de destaque no pensamento alencariano. O espaço intocado pelo homem é caracterizado como divino e puro, criação de Deus; em contrapartida, o que é produzido pelo homem, pela civilização, são as “fezes”, portanto, algo impuro, sujo.

Nos textos literários, tais temas (civilização e natureza) também são frequentes. Para exemplificação, temos o tratamento dado por Alencar à natureza e à civilização na descrição do espaço no seguinte trecho do capítulo I de O tronco do ipê:

À direita da casa, onde se erguia a alva capelinha da fazenda, sob a invocação de Nossa Senhora, a colina declinando com suave depressão ia morrer às margens do Paraíba. Desse lado encontrava-se o jardim, o pomar, a horta, e vários sítios de recreio arranjados com muito gosto.

Se a natureza brasileira, toucada pela arte europeia, perdia ali a flor nativa e a graça indígena; em compensação tornava-se mais faceira (ALENCAR, 1994, p. 13).

 

Em tal excerto, Alencar coloca, lado a lado, elementos de civilização e natureza: “a alva capelinha da fazenda, sob a invocação de Nossa Senhora” é um elemento europeu, sendo o catolicismo trazido pela cultura portuguesa, enquanto a “colina declinando com suave depressão” é um elemento da natureza brasileira. Assim, o narrador afirma que a natureza, a partir desse contato com o que é europeu, perde sua essência, tornando-se, porém, mais elegante. Apesar disso, notemos que, na frase em voz passiva, a natureza aparece antes da arte europeia, o que dá destaque ao primeiro termo. Portanto, entendemos que a natureza tem mais importância que a arte europeia para Alencar, a qual se resume aqui a adornar um elemento da natureza.

Em relação ao indianismo alencariano, também podemos encontrar, em O guarani, religiosidade nas comparações. No capítulo II, quando D. Mariz faz um juramento, a floresta é retratada como um “altar”, um lugar de culto:

―Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus filhos. Eu o juro!

Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava (ALENCAR, 2009, p. 24).

 

A discussão das relações entre o homem e a natureza tem sido uma das preocupações mais básicas da arte e da literatura na história das culturas humanas. De Franceschi assim descreve essa preocupação:

Somos cercados por coisas que não foram criadas por nós e possuem uma estrutura diferente da nossa: flores, prados, rios, montanhas, nuvens… Com o passar do tempo elas se tornaram objeto de nosso prazer, admiração ou terror. Sonhados pela imaginação como reflexo de nossa sensibilidade, esses objetos constituíram uma entidade à qual denominamos natureza (FRANCESCHI, 2007, p. 14).

 

O autor ainda afirma que, pela arte, estabelecemos um estatuto de relacionamento com a natureza. Também Cronon pensa na relação tradicionalmente estabelecida entre natureza e civilização, sugerindo que a natureza é autêntica somente quando nós, civilizados, estamos ausentes dela:

O mundo selvagem é a antítese natural e não decaída de uma civilização antinatural, que perdeu sua alma. É um lugar de liberdade em que podemos resgatar o eu que perdemos para as influências que perdemos para as influências corruptoras de nossa vida artificial. Acima de tudo, é a paisagem suprema da autenticidade (CRONON, apud GARRARD, 1996, p. 80).

 

É importante salientar que nesse mundo natural habita o que Alencar, assim como outros autores românticos, denomina, de forma não pejorativa, de “selvagem”: o homem natural, o indígena brasileiro, o qual tem contato direto com a natureza ainda num estado edênico. Corrobora Pinto (1995, p. 23) que o “selvagem” em Alencar seria “aquele que evolui no mundo primitivo, natural”. O civilizado, por conseguinte, seria aquele “que rompe com suas origens e se aprisiona nas cidades” (Id.). Por conseguinte, elementos modificados pelo homem, pelo progresso, como casas de alvenaria, armas de fogo e o homem de descendência europeia, consideraremos, neste trabalho, como elementos da civilização.

As relações entre natureza e civilização são constantemente reforçadas na obra alencariana. Assim, encontramos em O guarani o seguinte trecho:

O soberbo rio […] se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens estendiam-se ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras (ALENCAR, 2009, p. 20).

 

Percebemos que Alencar faz ampla menção a elementos naturais (“terra”, “bacia”, “trepadeiras”, “flores agrestes”, “vegetação”, “florestas virgens”, “margens do rio”), equiparando-os a um aspecto da arquitetura europeia, neste caso, uma catedral. Termos como “cortinas” e ” capitéis”, teriam a função de enobrecer e/ou deixar mais bela a natureza brasileira, assim como o verbo “ostentava” e o substantivo “luxo”, os quais nos remetem ao excesso, à pompa, característica associada à riqueza e à civilização.

Por outro lado, Iracema tenta enfatizar melhor o indígena e a natureza, o que se percebe quando Alencar descreve um pássaro: “O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho de cotão, até que volta no outro ano a lua das flores” (ALENCAR, 2009, P. 71). Nesse trecho percebemos que a lua é um elemento de medição do tempo para os indígenas: o tempo nas culturas indígenas não é medido pelo calendário gregoriano, que se torna um elemento europeu irrelevante em Iracema. Além disso, “o colibri sacia-se de mel e perfume”: o perfume nos remete a um odor, a um cheiro agradável, enquanto mel nos remete ao doce, a um sabor aprazível; ambos mel e perfume são encontrados na natureza. Em relação ao colibri, este é um pássaro originário das Américas, mas a expressão “cotão” (fibra ou partícula de tecido de algodão), relacionada ao ninho do colibri, é uma menção à civilização.

Isso indica que elementos da civilização também estão presentes em Iracema, porém de maneira mais primária, em componentes mais essenciais para a sobrevivência dos seres vivos, se comparados ao uso da temática grandiloquente e referente ao mundo católico em O guarani. Notamos, ainda, que essa utilização de termos europeus mais básicos é coerente com a ambientação do romance, visto que Iracema é uma obra ambientada logo após o descobrimento, enquanto o enredo de O guarani passa-se em um momento mais adiantado da colonização portuguesa.

Em ambos os romances, as descrições servem a propósitos nacionalistas. Conforme Candido, o romance romântico no Brasil, em suas produções mais características (em Alencar, Franklin Távora, Taunay), “elaborou a realidade graças ao ponto de vista, à posição intelectual e afetiva que norteou todo o nosso Romantismo, a saber, o nacionalismo literário” (CANDIDO, 2002, p. 99). Desse modo, Candido expõe que o nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu em escrever sobre coisas locais; no romance, a consequência foi a descrição de lugares, fatos, cenas, costumes do Brasil.

No entanto, a tendência à valorização da natureza brasileira já podia ser vislumbrada em períodos anteriores ao romantismo, como aponta Carvalho (2005, p. 51), analisando A Ilha da Maré (1705), de Manuel Botelho de Oliveira, que no século XVIII já escrevia poemas que retratavam a natureza brasileira, tendendo à exaltação de elementos locais:

As laranjas da terra [...]

Mais que as da Europa [são] doces e melhores,

E têm sempre a vantagem de maiores,

E nesta maioria, como maiores são têm mais valia.

(OLIVEIRA, 1705, apud CARVALHO, 2005, p. 38)

 

Nesse excerto, percebemos elementos que prenunciam um nacionalismo, mas que estão, ainda, relacionados ao comércio; seu interesse é mercantil, por isso é importante afirmar que nossas laranjas são melhores que as da Europa.

Quando o sentimento nacionalista propriamente dito desponta no século XIX, com o Romantismo, numa tentativa de criar um sentido de unidade para as várias províncias que nem sempre tinham interesses comuns, continuava sendo importante engrandecer a natureza brasileira, mas sem necessariamente os objetivos mercantilistas/materialistas detectados no exemplo acima. Para Carvalho (2005, p. 51), a natureza dará fisionomia ao país no século XIX. Desse modo, a autora afirma que a natureza passa, agora, a ser motivo mais poético, vinculada, no entanto, à exaltação nacionalista.

Ricupero (2004, p. XVIII-XIX) afirma que era “intenção deliberada dos românticos brasileiros” construir uma identidade nacional. O autor também constata que, “na época que se segue à independência de grande parte das antigas colônias ibéricas na América”, tem-se, para os indivíduos que começam a atuar na área política e literária, a tarefa de “definir mais precisamente a identidade política e cultural de tal parte do globo tão recentemente colocada em contato com as outras” (RICUPERO, 2004, p. XIX).

Referindo-se a políticos, altos funcionários e escritores, caso de Alencar, o qual, além de escritor, jornalista, ensaísta, crítico e comentarista social, foi deputado, ministro e membro do Conselho de Estado, Ricupero (2004, p. XXI) afirma que estes realizam um esforço, a partir de suas obras, em “criar referências para as sociedades em que agem”, tendo, portanto, atividade “eminentemente política”, “de construção nacional”. Desse modo, a atuação política e intelectual dos românticos explica-se “em razão da natureza do próprio esforço em que se engajaram com vistas a criar nações no Brasil e no resto da América Latina” (RICUPERO, 2004, p. XXII).

Ricupero (2004, p. XXV) aponta que, “no vocabulário romântico latino-americano, a palavra ‘civilização’ tem peso especial, o que provavelmente se explica pelo momento histórico que vive então o continente”. Assim, depois da independência, entende-se “civilização” como uma forma nova de relacionar-se com o mundo, principalmente o “centro capitalista”.

Todavia, os românticos também percebem o lado negativo do processo civilizatório, decorrente da revolução industrial que já estava avançada na Europa. Conforme Cevasco e Siqueira (1985, p. 46), na Europa, no século XIX, há a passagem da estrutura agrária para a industrial: milhares de pessoas deixam os campos para buscar a sobrevivência nas cidades. No entanto, quando aí chegam, tem que se submeter a condições de trabalho subumanas e salários miseráveis, penúria que não poupa mulheres ou crianças. Ademais, em consequência do crescimento das cidades e da construção de fábricas, a poluição e a destruição do meio ambiente se intensificam.

Nesse contexto, começa a surgir certa preocupação dos românticos com a destruição da natureza e com as condições de vida criadas pela revolução industrial. O seguinte excerto de O sertanejo parece confirmar tal afirmação, no qual o avanço da civilização é lamentado pelo narrador:

Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos na aurora serena e feliz da minha infância?

Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?

De dia em dia aquelas remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza, que tamanho encanto lhes infundia.

A civilização que penetra pelo interior corta os campos de estradas, e semeia pelo vastíssimo deserto as casas e mais tarde as povoações (ALENCAR, 1875, p. 11).

 

Como conciliar o anseio romântico por fazer parte do mundo civilizado europeu, e, ao mesmo tempo repudiar os problemas (que hoje chamaríamos “ecológicos”) causados por esse processo civilizatório? A solução de muitos autores é voltar-se para o passado medieval: a Idade Média aparece de um modo positivo como referência civilizatória em obras do Romantismo. Desse modo, referindo-se a romances históricos e citando, entre outras obras, As minas de prata (1865) de José de Alencar, Carpeaux (1978, p. 163) afirma que, em tais obras, “a Idade Média é glorificada; épocas pós-medievais são escolhidas só para descrever, com nostalgia, a derrota e o desaparecimento de tradições veneráveis”.

Apesar de o Brasil não ter um passado medieval, Alencar encontra uma solução para valorizar essas “tradições veneráveis”: retornar ao passado brasileiro e caracterizar, como heróis, os indígenas.  No momento em que Alencar escreve seu primeiro romance indianista, o indígena é importante para que os brasileiros se pensem “como brasileiros e não mais como portugueses, portugueses-americanos ou mesmo pernambucanos, paulistas, rio grandenses, etc.” (RICUPERO, 2004, P. 153): os índios estavam aqui antes dos portugueses, podendo ser considerados como os primeiros brasileiros.

Ricupero explica que, com a consolidação do Estado no Brasil, os românticos não objetivam mais glorificar o índio em oposição ao português (caso dos primeiros românticos e de Magalhães); ou seja, a questão já não é tanto de se “afirmar a autonomia brasileira”, “mas de como construir uma nação que não pode prescindir da influência do conquistador” (RICUPERO, 2004, p. 164). Desse modo, aparece o “tema da mestiçagem entre o índio e o português”, temática explorada no indianismo.

Referindo-se ao momento em que ocorre o “movimento” indianista, Treece, citando Carlos de Araújo Moreira Neto, autor de A política indigenista brasileira durante o século XIX, aponta o lugar ocupado pelo índio na sociedade:

A rusticidade do índio e sua aceitação de um regime de trabalho em condições servis que se mantinha sem modificações essenciais, nestas áreas, durante todo o decorrer do século, transformavam-no na solução mais adequada à crônica carência de força de trabalho dessas áreas. Todos os esforços de integração do índio à sociedade nacional, acompanhados dos inevitáveis discursos e projetos sobre a redenção do silvícola de seu estado de selvageria e de miséria, subordinavam-se, integralmente, aos propósitos de sua eventual utilização como força de trabalho dócil e barata (MOREIRA NETO, apud TREECE, 2003, p. 144).

 

Nesse ponto de vista, o valor do índio se encontra em sua utilidade para a economia. Treece (2003, p. 145) também aponta que para Varhagen o índio deveria ser considerado um obstáculo ao progresso da civilização, um bárbaro, e mais uma vez o índio aparece de forma negativa.

Outros autores contemporâneos a Alencar questionam a exploração dos índios pelos colonizadores, tais como o historiador maranhense João Francisco Lisboa, que, segundo Treece, se pergunta em sua Crônica do Brasil colonial, “se o progresso do Império não poderia realizar-se sem que os índios fossem despejados à força de suas terras tradicionais” (TREECE, 2003, p. 145). Assim, essa solução de integração e “coexistência pacífica” prevê o aldeamento de brasileiros e “colonos europeus” ao lado dos índios.  

Influenciado por esses debates, Alencar publica O guarani em 1856 e Iracema em 1865. Ambos compõem uma “mitologia indianista” do “auto-sacrifício”, das “alianças inter-raciais” e da “escravidão voluntária” que, segundo Treece, pode ser considerada semelhante à “política conciliatória de integração”. Essa política refere-se à “acomodação dos princípios liberais aos interesses do poder escravocrata e latifundiário” (TREECE, 2003, p. 146), ou seja, o liberalismo, que, em seus princípios, seria contra a escravidão, se “acomoda” com o sistema escravocrata durante o Segundo Reinado (que é também o momento histórico ao qual pertence José de Alencar).

Assim, Treece considera que, na “mitologia alencariana”, Peri ocuparia um entre-lugar. Ao mesmo tempo em que tenta preservar seu direito de transitar livremente pela floresta, o indígena serve “voluntária e fielmente” à “comunidade colonial” e opõe-se às forças que ameaçam a sobrevivência da família Mariz. Portanto, a personagem seria o “escravo ideal”, contribuindo para a noção alencariana de ordem social, pois reconcilia “o princípio liberal de autonomia individual com a noção de responsabilidade social ou a obrigação de defender a civilização” (TREECE, 2003, p. 147).

Peri é o índio descrito por D. Antônio de Mariz literalmente como um “cavalheiro português”, com características nobres:

― Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto na terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem! (ALENCAR, 2009, p. 51).

 

Também Bosi percebe um caráter ambivalente no herói de O guarani, ao mesmo tempo nobre e escravo. Bosi (2005, p. 189) expõe que o “olho aristocrático” de Alencar faz distinção entre os homens que têm ações honradas daqueles que têm ações vis. Em Alencar, Peri, o selvagem, é incluído entre esses homens com ações honradas, como mostra o episódio descrito no capítulo “O sacrifício” de O guarani, em que Peri se encontra como prisioneiro dos aimorés, tribo que se opõe aos heróis do romance, em que o cacique se comporta do seguinte modo em relação a Peri:

― Guerreiro goitacá, tu és forte e valente; tua nação é temida na guerra. A nação Aimoré é forte entre as mais fortes, valente entre as mais valentes. Tu vais morrer.

[…] O velho continuou:

― Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro; tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança. Tu vais morrer (ALENCAR, 2009, p. 253).

 

Embora o cacique afirme que ambas as “nações” são fortes e valentes, a ação realizada por Peri é heroica, pois este se entrega como prisioneiro para que os aimorés comam sua carne, que havia sido envenenada por um líquido previamente ingerido: o herói poderia, assim, por meio da autoimolação, salvar os Mariz, família à qual Cecília pertence, e que Peri dedica muitos esforços para proteger. O cacique, por outro lado, não pretende proteger ninguém, mas, como a personagem afirma, quer vingança, quer a morte do “guerreiro goitacá”; suas ações não são, desse modo, nobres.

Peri tem ações nobres como as de Dom Antônio de Mariz, o qual é descrito como um “dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens” (ALENCAR, 2009, p. 23). Desse modo, Bosi (2005, p. 190) afirma que Peri é nobre como os mais “ilustres barões portugueses”.

Do mesmo modo que o selvagem pode ter ações nobres, o homem civilizado pode ter ações vis, como explicita o seguinte trecho do capítulo VI de O guarani, em que D. Diogo de Mariz é repreendido pelo pai por matar uma índia:

Vendo aproximar-se seu pai, D. Diogo de Mariz ergueu-se e descobrindo-se esperou-o numa atitude respeitosa.

― Sr. Cavalheiro, disse o velho com um ar severo, infringistes ontem as ordens que vos dei.

― Senhor… […]

― Cometestes uma ação má assassinando uma mulher, uma ação indigna do nome que vos dei; isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta (ALENCAR, 2009, p. 44 – 45).

 

Tal ação ainda tem o peso de provocar a vingança dos aimorés, razão pela qual os Marizes são atacados e vencidos ao final do romance (com a exceção de Cecília, que foge com Peri). Por conseguinte, tanto civilizados quanto selvagens podem ter ações nobres, apesar de Peri se destacar nesse quesito pelo número de atos heroicos que realiza no decorrer da trama.

Assim, como explica Santiago (1982, p. 102), o selvagem é admitido no “castelo feudal” como um branco seria (com a única exceção de Lauriana, que o considera “um animal como um cavalo ou um cão”). Desse modo, a “barreira entre o mundo dos selvagens e o mundo aristocrático” (SANTIAGO, 1982, p. 103) é rompida, visto que Peri transita entre esses dois mundos e ainda é comparado a um europeu nobre por D. Mariz. Santiago (1982, p. 102) corrobora que tal “europeocentrismo romântico” tem por objetivo demonstrar “o valor nobre do selvagem”.

Na comparação mencionada entre selvagem e “cavalheiro português”, denota-se também uma hierarquia. Conforme Santiago (1982, p. 104), a hierarquização existe em Alencar para dar condição social elevada a personagens que, “em princípio”, não teriam tal condição. Para tal fim, o meio mais utilizado é a comparação com uma “realidade europeia”. Não obstante, a hierarquização, que se dá por meio da comparação, não se limita aos personagens.

Bosi (2005, p. 187) mostra que nas páginas iniciais de O guarani, na descrição da paisagem que cerca o solar dos Mariz, tem-se um grandioso cenário em que a fisionomia de uma “hierarquia de servo e senhor” pode ser percebida, como o excerto a seguir mostra:

É o Paquequer saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.

Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano (ALENCAR, 2009, p. 19).

 

Percebe-se que os rios são comparados com os termos “vassalo”, “tributário” e “suserano”, os quais são provenientes da hierarquia medieval europeia. “Majestosamente” é outro termo que podemos relacionar à hierarquia europeia pois podermos relacioná-lo a pompa e grandeza e refere-se aos títulos dos reis e imperadores.

Santiago (1982, p. 107), em relação ao rio Paquequer, lembra que o narrador afirma que o rio é “livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade” (ALENCAR, 2009, p. 19). Portanto, do mesmo modo que Peri, que tem “vidas sociais paralelas” (o que permite a este ser “cavalheiro português” e selvagem), assim também é o rio, o qual é livre, é “vassalo” do rio Paraíba e “suserano” dos rochedos.

Para Bosi (2005, p. 187), nesse cenário, Alencar oscilaria entre um “romantismo selvagem”, que entende o homem como um “comparsa” dos “dramas majestosos dos elementos”, ou seja, o homem como um ator secundário dessa natureza enaltecida, evidente nas descrições presentes nas primeiras páginas sobre o rio Paquequer; e entre a “perspectiva histórica”, em que a “natureza brasileira é posta a serviço do nobre conquistador”, para a qual Alencar pende mais, visto que, para Bosi (2005, 193), a “simples evocação dos tempos antigos”, isto é, a natureza descrita a partir de termos da Idade Medieval, é menos “pura” que o “primitivo natural”, em que a natureza é descrita sem esse tipo de europeização.

Notamos que na “perspectiva histórica” o homem tem destaque. Esta perspectiva pode ser exemplificada a partir da casa de Dom Antônio. A segurança da casa lembra a de um castelo medieval, fato percebido no excerto a seguir:

De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável (ALENCAR, 2009, p. 20).

 

Bosi mostra que a selva imita o modelo da vida medieval, pois Alencar dá ênfase na “inteira defesa”, o que “amarra os elementos naturais à esfera da pequena comunidade” (BOSI, 2005, p. 188), ou seja, o tronco das árvores e os espinheiros, que formavam uma “alta cerca”, imitam a proteção (dada para os “membros” da comunidade) de um castelo medieval.

Além disso, Santiago, se referindo à hierarquização entre os rios Paquequer e Paraíba, escreve que

 

Alencar sempre divide e subdivide para classificar hierarquicamente, estabelecendo relações infinitas de diferença, como se estivesse nos dizendo que não há possibilidade de uma repetição do mesmo dentro de qualquer sistema. (SANTIAGO, 1982, p. 105).

 

Assim, o autor expõe a conclusão de que no “reino dos homens brancos” e da natureza que os rodeia, não existe possibilidade de organização em que não exista hierarquia definida. Tal “imobilismo social” deixa os elementos da comunidade dos brancos estáticos, visto que tais personagens terão status social igual, pois a hierarquia, em Alencar, não se altera:

[A] hierarquia é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos, recobertos pelo campo semântico feudal […]. Cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo, visto que as possibilidades de transferência, de mobilidade, de ascensão, estão banidas do universo textual de Alencar (ALENCAR, 2009, p. 105).

 

Santiago (1982, p. 105) discorre que a exceção é o selvagem, o qual “foge à regra porque é livre” (em relação à sua inclusão na sociedade do branco). Em oposição, o autor expõe que os elementos não-selvagens são fixos, presos, estáticos socialmente. Assim, explica-se o fato do negro não ter natureza “nobre” nos textos de Alencar; “o selvagem é o único que tem o poder de mobilidade”. Desse modo, ainda de acordo com Santiago (1982, p. 106), se o selvagem é inimigo, “é enfrentado em guerra”; se é tomado “como cativo, é vassalo”; se os índios são “nobres” no próprio meio em que vivem, se inscrevem “num escalão mais alto dentro da hierarquia europeia”, mas sem existir ascensão, somente “absorção digna”.

Portanto, Peri não seria um “escravo” da civilização, mas escravo do amor, de Cecília. No entanto, se na civilização Peri pode ser descrito como escravo, em meio à natureza o mesmo não acontece, o que Santiago (1982, p. 107) se refere como “vida dupla”. Alencar dá ao personagem a condição de “rei das florestas”: “Estendeu com o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando os cavaleiros que continuassem a sua marcha” (ALENCAR, 2009, p. 34), sendo a natureza um dos meios em que o índio tem essa posição e sendo a sua outra “vida” a que ele é admitido entre os civilizados e tratado, como já foi mencionado, de “cavalheiro”. Assim, a europeização do personagem acontece nos dois meios, tanto por meio do termo “rei”, quanto do termo “cavalheiro”. Por outro lado, Loredano tem sua posição social como a de um “vassalo”, discorre Santiago (1982, p. 107). Tem-se uma “barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão” (ALENCAR, 2009, p. 58).

Bosi (2005, p. 192) cita que, nas páginas finais, descreve-se a fuga de Peri e Cecília pelo rio e pela floresta. Aqui, a narração volta-se para a lenda: o homem livra a mulher da morte, dando-lhe proteção. A relação entre os dois, selvagem e civilizada, se altera nessa abertura à natureza, em que o status de Peri passa de escravo para “rei” e, por isso, não tem conotação negativa o fato do personagem ser de raça indígena, pelo fato dele não estar mais em um mundo civilizado em que a maior parte dos integrantes tem origem europeia:

No meio de homens civilizados, [Peri] era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e dom Antônio fosse um amigo, era apenas um escravo.

Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem” (ALENCAR, 2009, p. 299).       

 

O excerto mostra um momento em que Cecília não está mais na civilização, mas passa a estar na natureza com o índio. Em contrapartida, em Iracema, o oposto acontece: o enredo se inicia com os personagens tendo um contato mais acentuado com elementos da natureza e com os indígenas e somente um personagem da civilização aparece, que é Martim.

Bosi (2005, p. 176) fala sobre o conservadorismo de Alencar, em que o escritor mostrava-se “receoso” de mudanças sociais: a hierarquia deveria ser mantida. Por isso, diferente de algumas obras estrangeiras, como as do conhecido Far West, em que o índio costuma lutar por suas convicções até a morte, Alencar cria, em Peri, um índio que perde sua identidade, que se torna uma espécie de escravo dos brancos. Peri se converte ao cristianismo (assim como o índio Poti em Iracema), sendo batizado por Dom Antônio:

― Se tu fosses cristão, Peri!…

O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.

― Por quê?… perguntou ele.

― Por quê?… disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação da minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.

O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do íntimo da alma.

― Peri quer ser cristão! exclamou ele.

[…] ― Sê cristão! Dou-te o meu nome (ALENCAR, 2009, p. 288).

 

Por conseguinte, tal personagem, por meio do senhor colonial, ganha nova identidade pessoal e religiosa; a religiosidade característica do índio é tirada de Peri.

Segundo Bosi (2005, p. 178), quem não é amigo do conquistador (os aimorés), em O Guarani, é adjetivado como “bárbaro”, “horrendo”, “carniceiro”, “satânico”, “diabólico”, “sinistro”, entre outros. Logo, existe certa intenção do narrador em favorecer discursivamente os índios que seguem a ordem pré-estabelecida, isto é, a hierarquia dos brancos. Logo, Peri se entrega incondicionalmente ao branco.

Segundo Bosi (2005, p. 179), a “beleza da prosa lírica” vai além do “dado empírico”, o qual é buscado pela “crônica realista”. O mito se faz “além” ou “aquém” da “cadeia narrativa verossimilhante”. O “aquém” refere-se ao fato de que o mito não requer verificação ou “provas testemunhais” do “discurso historiográfico”. O “além” refere-se ao fato de que o valor estético de um texto mítico ultrapassa o recorte da situação evocada e o seu “horizonte factual”. Mito indianista, metáfora romântica e pensamento conservador se misturam em O Guarani.

Como menciona Bosi (2005, p. 180), os valores “atribuídos romanticamente” ao índio, “o heroísmo, a beleza, a naturalidade”, não “brilham” “em si e para si” por conta da concepção que Alencar tem do processo colonizador, já que o índio se encontra em torno do conquistador, sendo este como um imã dotado de poder de “atraí-los e incorporá-los”. Bosi ainda expõe que “o quadro de um Brasil-Colônia criado à imagem e semelhança da comunidade feudal europeia aparece quase em estado puro no Guarani de Alencar” (BOSI, 2005, p. 187).

Postal (2001, p. 43) nota que Peri “não vacila”, “não duvida”, “não hesita”, “não objeta”, mas age, sendo suas ações têm o fim de proteger Ceci. Vale lembrar que Alencar informa, em nota, que Peri é uma “palavra da língua guarani que significa junco silvestre”. (ALENCAR, 2012, p. 39). Junco é uma planta flexível, usada para tecer cestos, esteiras e assentos de cadeira. Entendendo o junco como algo utilitário para a civilização e sendo o mesmo junco um elemento da natureza, temos que reconhecer que Peri ocupa este mesmo lugar, sendo útil para Ceci, Dom Mariz e os outros “civilizados”, além de ser um selvagem.

Posição diversa ocupa a personagem Isabel, que também tem descendência indígena, mas é mestiça e sobrinha de D. Antônio de Mariz, como infere-se do seguinte trecho, presente nas páginas iniciais do romance:

D. Isabel […] que os companheiros de D. Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma de suas explorações (ALENCAR, 2009, p. 26).

 

            Apesar de a personagem ser aceita como branca, é vista com desconfiança. Porém, isso não impede, como aponta Álvaro Marins (2012, p. 147), que a ideologia do colonizador esteja presente no discurso da meia-índia, quando esta fala de Peri:

― Não faças caso, Cecília, replicou Isabel reparando na melancolia da moça; pedirás a meu tio para caçar outro que farás domesticar, e ficarás mais manso que o teu Peri.

― Prima, disse a moça com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito injustamente este pobre índio que não te fez mal algum.

― Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão (ALENCAR, 2009, p. 40).

 

Mesmo sendo mestiça, concorda com D. Lauriana, negando a nobreza do indígena. Para Álvaro Marins, “trata-se de uma repreensão a Cecília por não saber se comportar como uma menina branca, filha da principal autoridade econômica, política e militar daquele pedaço de colônia portuguesa em meados do século XVII” (MARINS, 2012, p. 147-148). Na sequência do diálogo, Isabel sugere saber que é meia-índia e mostra desgosto com a situação:

― Sei que tu não pensas assim, Cecília; e que o teu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma. Mas os outros?… Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam?

― Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua; todos te querem e te respeitam  como devem.

Isabel abanou tristemente a cabeça.

― Vai-te bem o consolar-me; mas tu mesma tens visto, se eu tenho razão.

― Ora, um momento de zanga da minha mãe…

― É um momento bem longo, Cecília! Respondeu a moça com um sorriso amargo (ALENCAR, 2009, p. 40).

 

Assim, a relação entre Isabel e os membros da família Mariz é desconfortável por ser bastarda. Entretanto, no final do romance, as relações sociais estabelecidas com a família Mariz são extintas, pois a casa de D. Mariz é atacada pelos aimorés, restando apenas Peri e Cecília, que fogem.

Desse modo, o romance sugere que o indígena e a “virgem” poderão ter uma relação mais próxima, pois o amor de Peri é evidente e Cecília, apesar de não demonstrar sentir o mesmo durante a maior parte do enredo, parece mudar atitude quando, no último capítulo, o narrador afirma que a vida da personagem:

[…] estava mudada: a desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação da mulher.

Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança; as cores tinham sons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos aveludados, que seus sentidos não conheciam.

Uma flor, que antes era para ela apenas uma bela forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e palpitava; a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis, notas místicas que ressoavam no seu coração (ALENCAR, 2009, p. 297).

 

Mesmo que o narrador não dê certeza de que esse sentimento irá “completar a transformação da mulher”, o trecho mostra que Cecília começa a ver beleza nas coisas que não via antes, a partir do que podemos desconfiar que isso é paixão e/ou amor por Peri. Além disso, os últimos trechos mostram mais proximidade entre os dois personagens:

Ela embebeu os olhos nos olhos do seu amigo, e lânguida reclinou sua loura fronte.

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o voo” (ALENCAR, 2009, p. 316).

 

Tal proximidade, reforçada pelos lábios da “virgem”, indica que os dois estão propensos a ter uma relação mais íntima, criando a união entre o selvagem e o civilizado, os quais darão origem aos brasileiros.

 

Considerações finais

Este artigo mostrou que Alencar sempre teve preocupação em retratar a dinâmica entre a natureza e a civilização, seja em obras críticas, como em carta sobre A confederação dos Tamoios, ou em obras literárias, como em O tronco do ipê ou em obras indianistas, como Iracema e O guarani.

Essa preocupação serve a propósitos nacionalistas, em que o autor procura, por meio da exaltação das qualidades de seu país, criar uma identidade em que os brasileiros se enxerguem como um povo dotado de uma história e de uma cultura próprias.

Assim, Alencar, a exemplo dos românticos europeus, com seus cavaleiros medievais, tenta criar um passado mítico para o Brasil. Porém, como o Brasil não teve Idade Medieval, a solução encontrada pelo autor, ao escrever O guarani, é voltar ao passado e encontrar no indígena um “cavalheiro português” e, além disso, descrever os elementos da natureza a partir de termos de uma “realidade europeia”, proveniente da Idade Medieval.

Desse modo, O guarani se configura como metáfora dessa tentativa de conciliação entre natureza e o indígena e a civilização, visto que o processo colonizatório criou descendentes a partir da miscigenação dos brancos com os índios e, assim, no pensamento indianista, a nação surge.

Por meio do romance, Alencar também revela seu pensamento conservador, seu ideal de nação: tanto elementos da natureza quanto da civilização mostram uma hierarquia. Em relação à natureza, termos da hierarquia europeia são usados para descrevê-la. Nos elementos da civilização, o homem é estático, não muda de posição social e assim tudo funciona. Peri, o herói, é encurralado nesse ideal de conciliação das diferenças sociais. Ao mesmo tempo que é livre, nas florestas, é escravo de Cecília sendo, portanto, escravo da civilização (já que Cecília faz parte da civilização). O amor de Peri faz com ele proteja a personagem, o que dá vida dupla para o indígena: no “castelo feudal” e na natureza.

A apresentação que Alencar faz dos elementos da civilização e natureza demonstra suas ideias sobre a formação da nação brasileira, em que os brancos, colonizando o Brasil, acabam por se unir aos índios, dos quais nascerão os futuros brasileiros.

 

Referências

 

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GUINSBURG, J. Romantismo, Historicismo e História. In: ______. O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.

 

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MARTINS, Eduardo Vieira. A fonte subterrânea: José de Alencar e a retórica oitocentista. Londrina: EdUel, 2005.

 

PINTO, Maria Cecilia de Moraes. A vida selvagem: Paralelo entre Chateaubriand e Alencar. São Paulo: Annablume, 1995.

 

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SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In: ______. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Resenha do texto “Teoria e Prática na Reconstrução da Concepção de Linguagem do Professor de Línguas”

 

No texto “Teoria e Prática na Reconstrução da Concepção de Linguagem do Professor de Línguas”, a autora Solange T. Ricardo de Castro aponta, no resumo, que o objetivo de seu trabalho é “discutir os resultados de oportunidades de aprendizagem, oferecidas a professores de inglês da rede pública estadual, na reconstrução de suas concepções de linguagem”.

            Afirma ela que o que se discutirá são as mudanças nas concepções de linguagem de tais professores. Em seu brilhante texto, o qual está dividido em partes: Introdução, Ações Docentes no Módulo, Concepções de Linguagem, Considerações Finais e Processo de reconstrução do conhecimento do professor, a autora apresenta, neste último, a sua opinião de que há um papel crucial, para a mudança no modo de pensar do docente, na mediação pela palavra.

            Nesse trabalho a autora analisa resultados de oportunidades de aprendizagem que foram construídas como parte de um curso de formação em serviço para professores de inglês.

            Segundo a autora, sempre perspicaz, a mediação pela palavra tem papel crucial, nas situações de aprendizagem em que o professor participa e, nas quais, acontece uma alteração no sistema de pensamento do professor.

            Castro expõe que nesse processo, o professor re-elabora seu conhecimento e modifica seus conceitos de linguagem e de aprendizagem. A autora cita Vygotsky, apontando a importância da coexistência entre conhecimentos adquiridos pela prática e conhecimentos técnicos. Isto, evidentemente, torna seu texto mais fidedigno.

            Ela expõe que foi possibilitado aos professores-alunos durante as aulas: a discussão das teorias de linguagem e de aprendizagem de línguas e a elaboração de planos de aula.

A autora descreve em seu texto que, nas discussões, foi contraposto com as visões dos professores a visão sociointeracionista da linguagem. Os planos de aula, descreve ela, foram elaborados e, na terceira semana de aulas, eles foram re-elaborados por causa das “discussões teórico-práticas”. Pois o objetivo do curso era formar um professor reflexivo, acredita ela.

Como resultado do curso, a autora nos aponta que os professores-alunos apropriaram-se de uma visão sociointeracionista da linguagem, o que significa que responderam bem aos estímulos do curso.

Castro nos apresenta duas visões que os professores tinham: a visão funcional e a estrutural. Ela nos aponta como o curso foi bem sucedido com os professores de inglês, deixando para trás essas concepções.

Isto nos prova que é realmente um trabalho que merece ser lido, especialmente pelos professores e pelos estudantes de letras. É um trabalho que nos mostra a importância de se ter uma visão mais adequada da linguagem e da aprendizagem.

domingo, 19 de setembro de 2021

Violência resolve as coisas

 Foi sempre comum ouvir pessoas dizerem que violência gera violência. Este tipo de discurso é feito para impedir que os inocentes se protejam, aparentemente, e quem o propaga se configura como um vilão neste mundo. Pessoas más sempre usarão de violência para subjugar e dominar os fracos, violência esta que pode ser verbal ou física. Em muitos casos (não em todos), usar de violência para proteção é uma boa ideia. Se a violência verbal não funcionar, parta para a física. Não tenha medo. É pelo medo que o mau tenta subjugar.

domingo, 25 de abril de 2021

Undertake

 O chocolate da sua boca. Eu não sei o que eu faço, só sei que quero a sua boca. O dia escuro, a noite clara; e o seu juramento ao meio dia. Que diversão ver o mundo acabar! No amor não tem essa de "meu deslize". Eu sei lá se eu quero te ver hoje.

Solidão toma conta de mim. Eu não fiz nada...

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Aahhhhhhhhhhhhh!

 Oi, pessoa! Estou aqui para dizer que o futuro pode ser brilhante! Será? Não sei dizer porque é o futuro. Odeie o governo e se proteja dele. Conheça os anarcocapitalistas e os estude (não é necessário ser um deles). Ouça Grimes e siga o Elon Musk (por que não?). Imite-o, se for preciso (de uma forma inteligente, é claro). E entenda que o futuro chega e tem coisas que você pode fazer para melhorá-lo! Se preocupe com o futuro, mas não seja tolo criando esperanças em terceiros.