Eu sou a nemesis under you skin. I kill every human you have ever dreamed of. I'm a superior being, don't compare me to this shit on Earth. earth. I was born on a cemetery, so don't provoke me. I was infected, but I survived. I saw the cult of Cthulhu and I didn't join.
sábado, 11 de junho de 2022
NATUREZA E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR
UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE PONTA GROSSA
SETOR
DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO
DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
WILLIAM
DE TONI TEIXEIRA
NATUREZA
E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ
DE ALENCAR
PONTA GROSSA
2016
WILLIAM
DE TONI TEIXEIRA
NATUREZA
E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ
DE ALENCAR
Trabalho
de conclusão de curso apresentado para obtenção do diploma de Licenciado em
Letras – Português/Inglês. Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Estudos da Linguagem.
Orientadora:
Profª. Dra. Déborah Scheidt
PONTA
GROSSA
2016
WILLIAM
DE TONI TEIXEIRA
NATUREZA
E CIVILIZAÇÃO EM O GUARANI, DE JOSÉ
DE ALENCAR
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado para obtenção do título de licenciado em Letras Português/Inglês na
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Departamento de Estudos da Linguagem.
Ponta
Grossa, 12 de dezembro de 2016.
Profª.
Dra. Déborah Scheidt – Orientadora
Doutora
em Estudos Literários
Universidade
Federal do Paraná
Profª Dra.
Andréa Correa Paraíso Müller
Doutora
em Teoria e História Literária
UNICAMP
Prof.
Dr. Daniel Gomes
Doutor
em Literatura
Universidade
Federal de Santa Catarina
RESUMO
Este artigo examina as temáticas
da natureza e da civilização na obra de José de Alencar, mais especificamente
em O guarani. Com intuito de
engrandecer os elementos locais, a exemplo do Romantismo europeu, o autor
frequentemente associa suas descrições da natureza brasileira a características
da cultura europeia, tais como as tradições e rituais da religião católica.
Ansiando, também, por destacar os méritos da sociedade brasileira, elevando-os
ao mesmo patamar do mundo civilizado europeu, mas ao mesmo tempo, percebendo os
danos que a modernização da vida ocidental já estava causando ao meio ambiente,
Alencar inspira-se na ordem social medieval para caracterizar seus personagens
indígenas. Vêm daí a denominação de “cavalheiro português” dada a Peri e a
constante tentativa de hierarquizar tantos os elementos da natureza quanto da
civilização brasileira, nos moldes do passado medieval europeu.
Palavras-chave: José de Alencar. O guarani. Natureza. Civilização.
ABSTRACT
This article
analyzes themes related to nature and civilization in the works by José de
Alencar, more specifically in O Guarani.
Inspired by European Romanticism and aiming at praising local elements, Alencar
frequently associates his descriptions of Brazilian nature to traits of the
European culture, such as the traditions and rituals of the Catholic religion.
In his attempt to highlight the merits of Brazilian society by elevating them
to European standards, while at the same time perceiving the risks that the
modernizing of Western civilization posed to the environment, Alencar finds
inspiration in the Medieval social order to characterize his indigenous heroes.
That is the origin of the “Portuguese gentleman” designation given to Peri and
the constant attempt to hierarchize elements of Brazilian nature and
civilization, following the example of the European Medieval past.
Key
words: José de Alencar. O
Guarani. Nature. Civilization.
SUMÁRIO
Desenvolvimento...............................................................................................1
Considerações
finais.......................................................................................15
Referências......................................................................................................16
Existe, nas obras de José de Alencar, tanto ficcionais
quanto críticas, preocupação em retratar a natureza brasileira, além de
discutir e questionar como esta deve ser representada. Assim, Alencar critica
Gonçalves de Magalhães em uma série de cartas sobre A confederação dos Tamoios, obra em que Magalhães pretendia compor
uma autêntica epopeia brasileira. Alencar contesta a epopeia como gênero
adequado para exaltar a natureza, como o seguinte trecho da primeira carta
publicada expõe:
Filho da natureza
embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus,
veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu;
ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.
E se tudo isto não me
inspirasse uma poesia nova, se não desse ao meu pensamento outros voos que não
esses adejos de uma musa clássica ou romântica quebraria a minha pena com
desespero, mas não a mancharia numa poesia menos digna do meu país (ALENCAR,
1953, p. 5).
Ao ler esse trecho podemos
inferir que, para Alencar, é a partir do contato direto com a natureza que o
poeta pode alcançar a beleza e a originalidade da poesia, pois as matas
brasileiras têm o que o autor denomina de “maravilhas de Deus”, que são os
elementos da natureza específicos do Brasil (o nascer do sol experienciado nessas
terras, por exemplo); o trecho afirma que são esses elementos da natureza que
deveriam inspirar uma poesia nacional.
Em outra carta, destinada a
Machado de Assis, referindo-se à floresta da Tijuca, Alencar assevera:
O senhor conheceu esta
montanha encantadora. A natureza a colocou a duas léguas da corte, como um
ninho para as almas cansadas de pousar no chão.
Aqui tudo é puro e são.
O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu
azul.
Respira-se à larga, não
somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hábito celeste
do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram
ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade do berço (ALENCAR,
1960, p. 932, apud MARINS, 2005, p. 241).
Como podemos notar, mesmo em
um ambiente urbano, a natureza tem um lugar de destaque no pensamento
alencariano. O espaço intocado pelo homem é caracterizado como divino e puro,
criação de Deus; em contrapartida, o que é produzido pelo homem, pela
civilização, são as “fezes”, portanto, algo impuro, sujo.
Nos textos literários, tais
temas (civilização e natureza) também são frequentes. Para exemplificação,
temos o tratamento dado por Alencar à natureza e à civilização na descrição do
espaço no seguinte trecho do capítulo I de
O tronco do ipê:
À direita da casa, onde
se erguia a alva capelinha da fazenda, sob a invocação de Nossa Senhora, a
colina declinando com suave depressão ia morrer às margens do Paraíba. Desse
lado encontrava-se o jardim, o pomar, a horta, e vários sítios de recreio
arranjados com muito gosto.
Se a natureza
brasileira, toucada pela arte europeia, perdia ali a flor nativa e a graça
indígena; em compensação tornava-se mais faceira (ALENCAR, 1994, p. 13).
Em tal excerto, Alencar
coloca, lado a lado, elementos de civilização e natureza: “a alva capelinha da
fazenda, sob a invocação de Nossa Senhora” é um elemento europeu, sendo o
catolicismo trazido pela cultura portuguesa, enquanto a “colina declinando com
suave depressão” é um elemento da natureza brasileira. Assim, o narrador afirma
que a natureza, a partir desse contato com o que é europeu, perde sua essência,
tornando-se, porém, mais elegante. Apesar disso, notemos que, na frase em voz
passiva, a natureza aparece antes da arte europeia, o que dá destaque ao
primeiro termo. Portanto, entendemos que a natureza tem mais importância que a
arte europeia para Alencar, a qual se resume aqui a adornar um elemento da
natureza.
Em relação ao indianismo alencariano, também podemos
encontrar, em O guarani,
religiosidade nas comparações. No capítulo II, quando D. Mariz faz um juramento,
a floresta é retratada como um “altar”, um lugar de culto:
―Aqui sou português!
Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do
juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu
braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus
filhos. Eu o juro!
Descobrindo-se, curvou
o joelho em terra, e estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos
adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o
altar da natureza, em face do sol que transmontava (ALENCAR, 2009, p. 24).
A discussão das relações entre
o homem e a natureza tem sido uma das preocupações mais básicas da arte e da
literatura na história das culturas humanas. De Franceschi assim descreve essa
preocupação:
Somos cercados por
coisas que não foram criadas por nós e possuem uma estrutura diferente da
nossa: flores, prados, rios, montanhas, nuvens… Com o passar do tempo elas se
tornaram objeto de nosso prazer, admiração ou terror. Sonhados pela imaginação
como reflexo de nossa sensibilidade, esses objetos constituíram uma entidade à
qual denominamos natureza (FRANCESCHI, 2007, p. 14).
O autor ainda afirma que, pela
arte, estabelecemos um estatuto de relacionamento com a natureza. Também Cronon
pensa na relação tradicionalmente estabelecida entre natureza e civilização,
sugerindo que a natureza é autêntica somente quando nós, civilizados, estamos
ausentes dela:
O mundo
selvagem é a antítese natural e não decaída de uma civilização antinatural, que
perdeu sua alma. É um lugar de liberdade em que podemos resgatar o eu que
perdemos para as influências que perdemos para as influências corruptoras de
nossa vida artificial. Acima de tudo, é a paisagem suprema da autenticidade
(CRONON, apud GARRARD, 1996, p. 80).
É importante salientar que
nesse mundo natural habita o que Alencar, assim como outros autores românticos,
denomina, de forma não pejorativa, de “selvagem”: o homem natural, o indígena
brasileiro, o qual tem contato direto com a natureza ainda num estado edênico.
Corrobora Pinto (1995, p. 23) que o “selvagem” em Alencar seria “aquele que
evolui no mundo primitivo, natural”. O civilizado, por conseguinte, seria
aquele “que rompe com suas origens e se aprisiona nas cidades” (Id.). Por
conseguinte, elementos modificados pelo homem, pelo progresso, como casas de
alvenaria, armas de fogo e o homem de descendência europeia, consideraremos, neste
trabalho, como elementos da civilização.
As relações entre natureza e
civilização são constantemente reforçadas na obra alencariana. Assim,
encontramos em O guarani o seguinte
trecho:
O soberbo rio […] se
estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e
onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e
flores agrestes.
A vegetação nessas
paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens
estendiam-se ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de
verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras (ALENCAR, 2009, p.
20).
Percebemos que Alencar faz
ampla menção a elementos naturais (“terra”, “bacia”, “trepadeiras”, “flores
agrestes”, “vegetação”, “florestas virgens”, “margens do rio”), equiparando-os
a um aspecto da arquitetura europeia, neste caso, uma catedral. Termos como
“cortinas” e ” capitéis”, teriam a função de enobrecer e/ou deixar mais bela a
natureza brasileira, assim como o verbo “ostentava” e o substantivo “luxo”, os
quais nos remetem ao excesso, à pompa, característica associada à riqueza e à
civilização.
Por outro lado, Iracema tenta enfatizar melhor o
indígena e a natureza, o que se percebe quando Alencar descreve um pássaro: “O
colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho de
cotão, até que volta no outro ano a lua das flores” (ALENCAR, 2009, P. 71). Nesse
trecho percebemos que a lua é um elemento de medição do tempo para os
indígenas: o tempo nas culturas indígenas não é medido pelo calendário
gregoriano, que se torna um elemento europeu irrelevante em Iracema. Além disso, “o colibri sacia-se
de mel e perfume”: o perfume nos remete a um odor, a um cheiro agradável,
enquanto mel nos remete ao doce, a um sabor aprazível; ambos mel e perfume são
encontrados na natureza. Em relação ao colibri, este é um pássaro originário
das Américas, mas a expressão “cotão” (fibra ou partícula de tecido de algodão),
relacionada ao ninho do colibri, é uma menção à civilização.
Isso indica que elementos da
civilização também estão presentes em Iracema,
porém de maneira mais primária, em componentes mais essenciais para a
sobrevivência dos seres vivos, se comparados ao uso da temática grandiloquente
e referente ao mundo católico em O guarani.
Notamos, ainda, que essa utilização de termos europeus mais básicos é coerente
com a ambientação do romance, visto que Iracema
é uma obra ambientada logo após o descobrimento, enquanto o enredo de O guarani passa-se em um momento mais
adiantado da colonização portuguesa.
Em ambos os romances, as
descrições servem a propósitos nacionalistas. Conforme Candido, o romance
romântico no Brasil, em suas produções mais características (em Alencar,
Franklin Távora, Taunay), “elaborou a realidade graças ao ponto de vista, à
posição intelectual e afetiva que norteou todo o nosso Romantismo, a saber, o
nacionalismo literário” (CANDIDO, 2002, p. 99). Desse modo, Candido expõe que o
nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu em escrever sobre coisas
locais; no romance, a consequência foi a descrição de lugares, fatos, cenas,
costumes do Brasil.
No entanto, a tendência à
valorização da natureza brasileira já podia ser vislumbrada em períodos
anteriores ao romantismo, como aponta Carvalho (2005, p. 51), analisando A Ilha da Maré (1705), de Manuel Botelho
de Oliveira, que no século XVIII já escrevia poemas que retratavam a natureza
brasileira, tendendo à exaltação de elementos locais:
As laranjas da terra
[...]
Mais que as da Europa [são]
doces e melhores,
E têm sempre a vantagem
de maiores,
E nesta maioria, como
maiores são têm mais valia.
(OLIVEIRA, 1705, apud
CARVALHO, 2005, p. 38)
Nesse excerto, percebemos elementos
que prenunciam um nacionalismo, mas que estão, ainda, relacionados ao comércio;
seu interesse é mercantil, por isso é importante afirmar que nossas laranjas
são melhores que as da Europa.
Quando o sentimento
nacionalista propriamente dito desponta no século XIX, com o Romantismo, numa
tentativa de criar um sentido de unidade para as várias províncias que nem sempre
tinham interesses comuns, continuava sendo importante engrandecer a natureza
brasileira, mas sem necessariamente os objetivos mercantilistas/materialistas
detectados no exemplo acima. Para Carvalho (2005, p. 51), a natureza dará
fisionomia ao país no século XIX. Desse modo, a autora afirma que a natureza
passa, agora, a ser motivo mais poético, vinculada, no entanto, à exaltação
nacionalista.
Ricupero (2004, p. XVIII-XIX)
afirma que era “intenção deliberada dos românticos brasileiros” construir uma
identidade nacional. O autor também constata que, “na época que se segue à independência
de grande parte das antigas colônias ibéricas na América”, tem-se, para os
indivíduos que começam a atuar na área política e literária, a tarefa de “definir
mais precisamente a identidade política e cultural de tal parte do globo tão
recentemente colocada em contato com as outras” (RICUPERO, 2004, p. XIX).
Referindo-se a políticos,
altos funcionários e escritores, caso de Alencar, o qual, além de escritor,
jornalista, ensaísta, crítico e comentarista social, foi deputado, ministro e
membro do Conselho de Estado, Ricupero (2004, p. XXI) afirma que estes realizam
um esforço, a partir de suas obras, em “criar referências para as sociedades em
que agem”, tendo, portanto, atividade “eminentemente política”, “de construção
nacional”. Desse modo, a atuação política e intelectual dos românticos
explica-se “em razão da natureza do próprio esforço em que se engajaram com
vistas a criar nações no Brasil e no resto da América Latina” (RICUPERO, 2004,
p. XXII).
Ricupero (2004, p. XXV) aponta
que, “no vocabulário romântico latino-americano, a palavra ‘civilização’ tem
peso especial, o que provavelmente se explica pelo momento histórico que vive
então o continente”. Assim, depois da independência, entende-se “civilização”
como uma forma nova de relacionar-se com o mundo, principalmente o “centro
capitalista”.
Todavia, os românticos também
percebem o lado negativo do processo civilizatório, decorrente da revolução
industrial que já estava avançada na Europa. Conforme Cevasco e Siqueira (1985,
p. 46), na Europa, no século XIX, há a passagem da estrutura agrária para a
industrial: milhares de pessoas deixam os campos para buscar a sobrevivência
nas cidades. No entanto, quando aí chegam, tem que se submeter a condições de
trabalho subumanas e salários miseráveis, penúria que não poupa mulheres ou
crianças. Ademais, em consequência do crescimento das cidades e da construção
de fábricas, a poluição e a destruição do meio ambiente se intensificam.
Nesse contexto, começa a
surgir certa preocupação dos românticos com a destruição da natureza e com as
condições de vida criadas pela revolução industrial. O seguinte excerto de O sertanejo parece confirmar tal
afirmação, no qual o avanço da civilização é lamentado pelo narrador:
Quando te tornarei a
ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos na aurora serena e
feliz da minha infância?
Quando tornarei a
respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga
a seiva dessa natureza possante?
De dia em dia aquelas
remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza, que tamanho encanto lhes
infundia.
A civilização que
penetra pelo interior corta os campos de estradas, e semeia pelo vastíssimo
deserto as casas e mais tarde as povoações (ALENCAR, 1875, p. 11).
Como conciliar o anseio
romântico por fazer parte do mundo civilizado europeu, e, ao mesmo tempo
repudiar os problemas (que hoje chamaríamos “ecológicos”) causados por esse
processo civilizatório? A solução de muitos autores é voltar-se para o passado
medieval: a Idade Média aparece de um modo positivo como referência
civilizatória em obras do Romantismo. Desse modo, referindo-se a romances
históricos e citando, entre outras obras, As
minas de prata (1865) de José de Alencar, Carpeaux (1978, p. 163) afirma
que, em tais obras, “a Idade Média é glorificada; épocas pós-medievais são
escolhidas só para descrever, com nostalgia, a derrota e o desaparecimento de tradições
veneráveis”.
Apesar de o Brasil não ter um
passado medieval, Alencar encontra uma solução para valorizar essas “tradições
veneráveis”: retornar ao passado brasileiro e caracterizar, como heróis, os
indígenas. No momento em que Alencar
escreve seu primeiro romance indianista, o indígena é importante para que os
brasileiros se pensem “como brasileiros e não mais como portugueses,
portugueses-americanos ou mesmo pernambucanos, paulistas, rio grandenses, etc.”
(RICUPERO, 2004, P. 153): os índios estavam aqui antes dos portugueses, podendo
ser considerados como os primeiros brasileiros.
Ricupero explica que, com a
consolidação do Estado no Brasil, os românticos não objetivam mais glorificar o
índio em oposição ao português (caso dos primeiros românticos e de Magalhães);
ou seja, a questão já não é tanto de se “afirmar a autonomia brasileira”, “mas
de como construir uma nação que não pode prescindir da influência do
conquistador” (RICUPERO, 2004, p. 164). Desse modo, aparece o “tema da
mestiçagem entre o índio e o português”, temática explorada no indianismo.
Referindo-se ao momento em que
ocorre o “movimento” indianista, Treece, citando Carlos de Araújo Moreira Neto,
autor de A política indigenista brasileira
durante o século XIX, aponta o lugar ocupado pelo índio na sociedade:
A rusticidade do índio e sua aceitação
de um regime de trabalho em condições servis que se mantinha sem modificações
essenciais, nestas áreas, durante todo o decorrer do século, transformavam-no
na solução mais adequada à crônica carência de força de trabalho dessas áreas.
Todos os esforços de integração do índio à sociedade nacional, acompanhados dos
inevitáveis discursos e projetos sobre a redenção do silvícola de seu estado de
selvageria e de miséria, subordinavam-se, integralmente, aos propósitos de sua
eventual utilização como força de trabalho dócil e barata (MOREIRA NETO, apud TREECE,
2003, p. 144).
Nesse ponto de vista, o valor
do índio se encontra em sua utilidade para a economia. Treece (2003, p. 145)
também aponta que para Varhagen o índio deveria ser considerado um obstáculo ao
progresso da civilização, um bárbaro, e mais uma vez o índio aparece de forma
negativa.
Outros autores contemporâneos
a Alencar questionam a exploração dos índios pelos colonizadores, tais como o historiador
maranhense João Francisco Lisboa, que, segundo Treece, se pergunta em sua Crônica do Brasil colonial, “se o
progresso do Império não poderia realizar-se sem que os índios fossem
despejados à força de suas terras tradicionais” (TREECE, 2003, p. 145). Assim,
essa solução de integração e “coexistência pacífica” prevê o aldeamento de
brasileiros e “colonos europeus” ao lado dos índios.
Influenciado por esses
debates, Alencar publica O guarani em 1856 e Iracema em 1865. Ambos compõem uma “mitologia indianista” do “auto-sacrifício”,
das “alianças inter-raciais” e da “escravidão voluntária” que, segundo Treece,
pode ser considerada semelhante à “política conciliatória de integração”. Essa
política refere-se à “acomodação dos princípios liberais aos interesses do
poder escravocrata e latifundiário” (TREECE, 2003, p. 146), ou seja, o
liberalismo, que, em seus princípios, seria contra a escravidão, se “acomoda”
com o sistema escravocrata durante o Segundo Reinado (que é também o momento
histórico ao qual pertence José de Alencar).
Assim, Treece considera que, na
“mitologia alencariana”, Peri ocuparia um entre-lugar. Ao mesmo tempo em que tenta
preservar seu direito de transitar livremente pela floresta, o indígena serve “voluntária
e fielmente” à “comunidade colonial” e opõe-se às forças que ameaçam a sobrevivência
da família Mariz. Portanto, a personagem seria o “escravo ideal”, contribuindo
para a noção alencariana de ordem social, pois reconcilia “o princípio liberal
de autonomia individual com a noção de responsabilidade social ou a obrigação
de defender a civilização” (TREECE, 2003, p. 147).
Peri é o índio descrito por D.
Antônio de Mariz literalmente como um “cavalheiro português”, com
características nobres:
― Não há dúvida, disse
D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade
com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto na
terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando
minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me,
Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem! (ALENCAR, 2009, p.
51).
Também Bosi percebe um caráter
ambivalente no herói de O guarani, ao
mesmo tempo nobre e escravo. Bosi (2005, p. 189) expõe que o “olho
aristocrático” de Alencar faz distinção entre os homens que têm ações honradas
daqueles que têm ações vis. Em Alencar, Peri, o selvagem, é incluído entre
esses homens com ações honradas, como mostra o episódio descrito no capítulo “O
sacrifício” de O guarani, em que Peri
se encontra como prisioneiro dos aimorés, tribo que se opõe aos heróis do romance,
em que o cacique se comporta do seguinte modo em relação a Peri:
― Guerreiro goitacá, tu
és forte e valente; tua nação é temida na guerra. A nação Aimoré é forte entre
as mais fortes, valente entre as mais valentes. Tu vais morrer.
[…] O velho continuou:
― Guerreiro goitacá, tu
és prisioneiro; tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos
de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança. Tu vais morrer
(ALENCAR, 2009, p. 253).
Embora o cacique afirme que
ambas as “nações” são fortes e valentes, a ação realizada por Peri é heroica,
pois este se entrega como prisioneiro para que os aimorés comam sua carne, que
havia sido envenenada por um líquido previamente ingerido: o herói poderia,
assim, por meio da autoimolação, salvar os Mariz, família à qual Cecília
pertence, e que Peri dedica muitos esforços para proteger. O cacique, por outro
lado, não pretende proteger ninguém, mas, como a personagem afirma, quer
vingança, quer a morte do “guerreiro goitacá”; suas ações não são, desse modo,
nobres.
Peri tem ações nobres como as
de Dom Antônio de Mariz, o qual é descrito como um “dos cavalheiros que mais se
haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e
os ataques dos selvagens” (ALENCAR, 2009, p. 23). Desse modo, Bosi (2005, p.
190) afirma que Peri é nobre como os mais “ilustres barões portugueses”.
Do mesmo modo que o selvagem
pode ter ações nobres, o homem civilizado pode ter ações vis, como explicita o
seguinte trecho do capítulo VI de O guarani,
em que D. Diogo de Mariz é repreendido pelo pai por matar uma índia:
Vendo aproximar-se seu
pai, D. Diogo de Mariz ergueu-se e descobrindo-se esperou-o numa atitude
respeitosa.
― Sr. Cavalheiro, disse
o velho com um ar severo, infringistes ontem as ordens que vos dei.
― Senhor… […]
― Cometestes uma ação
má assassinando uma mulher, uma ação indigna do nome que vos dei; isto mostra
que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta (ALENCAR, 2009, p.
44 – 45).
Tal ação ainda tem o peso de
provocar a vingança dos aimorés, razão pela qual os Marizes são atacados e
vencidos ao final do romance (com a exceção de Cecília, que foge com Peri). Por
conseguinte, tanto civilizados quanto selvagens podem ter ações nobres, apesar
de Peri se destacar nesse quesito pelo número de atos heroicos que realiza no
decorrer da trama.
Assim, como explica Santiago
(1982, p. 102), o selvagem é admitido no “castelo feudal” como um branco seria (com
a única exceção de Lauriana, que o considera “um animal como um cavalo ou um
cão”). Desse modo, a “barreira entre o mundo dos selvagens e o mundo aristocrático”
(SANTIAGO, 1982, p. 103) é rompida, visto que Peri transita entre esses dois
mundos e ainda é comparado a um europeu nobre por D. Mariz. Santiago (1982, p.
102) corrobora que tal “europeocentrismo romântico” tem por objetivo demonstrar
“o valor nobre do selvagem”.
Na comparação mencionada entre
selvagem e “cavalheiro português”, denota-se também uma hierarquia. Conforme
Santiago (1982, p. 104), a hierarquização existe em Alencar para dar condição
social elevada a personagens que, “em princípio”, não teriam tal condição. Para
tal fim, o meio mais utilizado é a comparação com uma “realidade europeia”. Não
obstante, a hierarquização, que se dá por meio da comparação, não se limita aos
personagens.
Bosi (2005, p. 187) mostra que
nas páginas iniciais de O guarani, na
descrição da paisagem que cerca o solar dos Mariz, tem-se um grandioso cenário
em que a fisionomia de uma “hierarquia de servo e senhor” pode ser percebida,
como o excerto a seguir mostra:
É o Paquequer saltando de cascata em
cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e
embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo
e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os
rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano (ALENCAR, 2009, p. 19).
Percebe-se que os rios são
comparados com os termos “vassalo”, “tributário” e “suserano”, os quais são
provenientes da hierarquia medieval europeia. “Majestosamente” é outro termo
que podemos relacionar à hierarquia europeia pois podermos relacioná-lo a pompa
e grandeza e refere-se aos títulos dos reis e imperadores.
Santiago (1982, p. 107), em
relação ao rio Paquequer, lembra que o narrador afirma que o rio é “livre
ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade” (ALENCAR, 2009, p. 19).
Portanto, do mesmo modo que Peri, que tem “vidas sociais paralelas” (o que
permite a este ser “cavalheiro português” e selvagem), assim também é o rio, o
qual é livre, é “vassalo” do rio Paraíba e “suserano” dos rochedos.
Para Bosi (2005, p. 187),
nesse cenário, Alencar oscilaria entre um “romantismo selvagem”, que entende o
homem como um “comparsa” dos “dramas majestosos dos elementos”, ou seja, o
homem como um ator secundário dessa natureza enaltecida, evidente nas
descrições presentes nas primeiras páginas sobre o rio Paquequer; e entre a “perspectiva
histórica”, em que a “natureza brasileira é posta a serviço do nobre conquistador”,
para a qual Alencar pende mais, visto que, para Bosi (2005, 193), a “simples
evocação dos tempos antigos”, isto é, a natureza descrita a partir de termos da
Idade Medieval, é menos “pura” que o “primitivo natural”, em que a natureza é
descrita sem esse tipo de europeização.
Notamos que na “perspectiva histórica”
o homem tem destaque. Esta perspectiva pode ser exemplificada a partir da casa
de Dom Antônio. A segurança da casa lembra a de um castelo medieval, fato percebido
no excerto a seguir:
De um e
outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando
gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas
árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável
(ALENCAR, 2009, p. 20).
Bosi mostra que a selva imita
o modelo da vida medieval, pois Alencar dá ênfase na “inteira defesa”, o que “amarra
os elementos naturais à esfera da pequena comunidade” (BOSI, 2005, p. 188), ou
seja, o tronco das árvores e os espinheiros, que formavam uma “alta cerca”,
imitam a proteção (dada para os “membros” da comunidade) de um castelo medieval.
Além disso, Santiago, se
referindo à hierarquização entre os rios Paquequer e Paraíba, escreve que
Alencar
sempre divide e subdivide para classificar hierarquicamente, estabelecendo
relações infinitas de diferença, como se estivesse nos dizendo que não há
possibilidade de uma repetição do mesmo dentro de qualquer sistema. (SANTIAGO,
1982, p. 105).
Assim, o autor expõe a conclusão
de que no “reino dos homens brancos” e da natureza que os rodeia, não existe
possibilidade de organização em que não exista hierarquia definida. Tal “imobilismo
social” deixa os elementos da comunidade dos brancos estáticos, visto que tais
personagens terão status social igual, pois a hierarquia, em Alencar, não se
altera:
[A] hierarquia
é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos, recobertos pelo
campo semântico feudal […]. Cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo,
visto que as possibilidades de transferência, de mobilidade, de ascensão, estão
banidas do universo textual de Alencar (ALENCAR, 2009, p. 105).
Santiago (1982, p. 105)
discorre que a exceção é o selvagem, o qual “foge à regra porque é livre” (em
relação à sua inclusão na sociedade do branco). Em oposição, o autor expõe que
os elementos não-selvagens são fixos, presos, estáticos socialmente. Assim,
explica-se o fato do negro não ter natureza “nobre” nos textos de Alencar; “o
selvagem é o único que tem o poder de mobilidade”. Desse modo, ainda de acordo
com Santiago (1982, p. 106), se o selvagem é inimigo, “é enfrentado em guerra”;
se é tomado “como cativo, é vassalo”; se os índios são “nobres” no próprio meio
em que vivem, se inscrevem “num escalão mais alto dentro da hierarquia europeia”,
mas sem existir ascensão, somente “absorção digna”.
Portanto, Peri não seria um
“escravo” da civilização, mas escravo do amor, de Cecília. No entanto, se na
civilização Peri pode ser descrito como escravo, em meio à natureza o mesmo não
acontece, o que Santiago (1982, p. 107) se refere como “vida dupla”. Alencar dá
ao personagem a condição de “rei das florestas”: “Estendeu com o braço e fez
com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando os
cavaleiros que continuassem a sua marcha” (ALENCAR, 2009, p. 34), sendo a natureza
um dos meios em que o índio tem essa posição e sendo a sua outra “vida” a que
ele é admitido entre os civilizados e tratado, como já foi mencionado, de
“cavalheiro”. Assim, a europeização do personagem acontece nos dois meios,
tanto por meio do termo “rei”, quanto do termo “cavalheiro”. Por outro lado,
Loredano tem sua posição social como a de um “vassalo”, discorre Santiago
(1982, p. 107). Tem-se uma “barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e
a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão” (ALENCAR, 2009,
p. 58).
Bosi (2005, p. 192) cita que,
nas páginas finais, descreve-se a fuga de Peri e Cecília pelo rio e pela
floresta. Aqui, a narração volta-se para a lenda: o homem livra a mulher da
morte, dando-lhe proteção. A relação entre os dois, selvagem e civilizada, se
altera nessa abertura à natureza, em que o status de Peri passa de escravo para
“rei” e, por isso, não tem conotação negativa o fato do personagem ser de raça
indígena, pelo fato dele não estar mais em um mundo civilizado em que a maior
parte dos integrantes tem origem europeia:
No meio de homens
civilizados, [Peri] era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem
a civilização repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e dom
Antônio fosse um amigo, era apenas um escravo.
Aqui, porém, todas as
distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe,
recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando
pelo direito da força e da coragem” (ALENCAR, 2009, p. 299).
O excerto mostra um momento em
que Cecília não está mais na civilização, mas passa a estar na natureza com o
índio. Em contrapartida, em Iracema,
o oposto acontece: o enredo se inicia com os personagens tendo um contato mais
acentuado com elementos da natureza e com os indígenas e somente um personagem
da civilização aparece, que é Martim.
Bosi (2005, p. 176) fala sobre
o conservadorismo de Alencar, em que o escritor mostrava-se “receoso” de
mudanças sociais: a hierarquia deveria ser mantida. Por isso, diferente de
algumas obras estrangeiras, como as do conhecido Far West, em que o índio costuma lutar por suas convicções até a
morte, Alencar cria, em Peri, um índio que perde sua identidade, que se torna
uma espécie de escravo dos brancos. Peri se converte ao cristianismo (assim
como o índio Poti em Iracema), sendo
batizado por Dom Antônio:
― Se tu fosses cristão,
Peri!…
O índio voltou-se
extremamente admirado daquelas palavras.
― Por quê?… perguntou
ele.
― Por quê?… disse
lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação
da minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à
minha irmã.
O rosto do selvagem
iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam
articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do íntimo da alma.
― Peri quer ser
cristão! exclamou ele.
[…] ― Sê cristão!
Dou-te o meu nome (ALENCAR, 2009, p. 288).
Por conseguinte, tal personagem,
por meio do senhor colonial, ganha nova identidade pessoal e religiosa; a
religiosidade característica do índio é tirada de Peri.
Segundo Bosi (2005, p. 178),
quem não é amigo do conquistador (os aimorés), em O Guarani, é adjetivado como “bárbaro”, “horrendo”, “carniceiro”, “satânico”,
“diabólico”, “sinistro”, entre outros. Logo, existe certa intenção do narrador
em favorecer discursivamente os índios que seguem a ordem pré-estabelecida,
isto é, a hierarquia dos brancos. Logo, Peri se entrega incondicionalmente ao
branco.
Segundo Bosi (2005, p. 179), a
“beleza da prosa lírica” vai além do “dado empírico”, o qual é buscado pela “crônica
realista”. O mito se faz “além” ou “aquém” da “cadeia narrativa verossimilhante”.
O “aquém” refere-se ao fato de que o mito não requer verificação ou “provas
testemunhais” do “discurso historiográfico”. O “além” refere-se ao fato de que
o valor estético de um texto mítico ultrapassa o recorte da situação evocada e
o seu “horizonte factual”. Mito indianista, metáfora romântica e pensamento
conservador se misturam em O Guarani.
Como menciona Bosi (2005, p.
180), os valores “atribuídos romanticamente” ao índio, “o heroísmo, a beleza, a
naturalidade”, não “brilham” “em si e para si” por conta da concepção que
Alencar tem do processo colonizador, já que o índio se encontra em torno do
conquistador, sendo este como um imã dotado de poder de “atraí-los e
incorporá-los”. Bosi ainda expõe que “o quadro de um Brasil-Colônia criado à
imagem e semelhança da comunidade feudal europeia aparece quase em estado puro
no Guarani de Alencar” (BOSI, 2005,
p. 187).
Postal (2001, p. 43) nota que
Peri “não vacila”, “não duvida”, “não hesita”, “não objeta”, mas age, sendo
suas ações têm o fim de proteger Ceci. Vale lembrar que Alencar informa, em
nota, que Peri é uma “palavra da língua guarani que significa junco silvestre”. (ALENCAR, 2012, p.
39). Junco é uma planta flexível, usada para tecer cestos, esteiras e assentos
de cadeira. Entendendo o junco como algo utilitário para a civilização e sendo
o mesmo junco um elemento da natureza, temos que reconhecer que Peri ocupa este
mesmo lugar, sendo útil para Ceci, Dom Mariz e os outros “civilizados”, além de
ser um selvagem.
Posição diversa ocupa a
personagem Isabel, que também tem descendência indígena, mas é mestiça e
sobrinha de D. Antônio de Mariz, como infere-se do seguinte trecho, presente
nas páginas iniciais do romance:
D. Isabel […] que os
companheiros de D. Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos
amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma de suas
explorações (ALENCAR, 2009, p. 26).
Apesar de a
personagem ser aceita como branca, é vista com desconfiança. Porém, isso não
impede, como aponta Álvaro Marins (2012, p. 147), que a ideologia do colonizador
esteja presente no discurso da meia-índia, quando esta fala de Peri:
― Não faças caso,
Cecília, replicou Isabel reparando na melancolia da moça; pedirás a meu tio
para caçar outro que farás domesticar, e ficarás mais manso que o teu Peri.
― Prima, disse a moça
com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito injustamente este pobre índio
que não te fez mal algum.
― Ora, Cecília, como
queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua
mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão (ALENCAR, 2009,
p. 40).
Mesmo sendo mestiça, concorda
com D. Lauriana, negando a nobreza do indígena. Para Álvaro Marins, “trata-se
de uma repreensão a Cecília por não saber se comportar como uma menina branca,
filha da principal autoridade econômica, política e militar daquele pedaço de
colônia portuguesa em meados do século XVII” (MARINS, 2012, p. 147-148). Na
sequência do diálogo, Isabel sugere saber que é meia-índia e mostra desgosto
com a situação:
― Sei que tu não pensas
assim, Cecília; e que o teu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a
alma. Mas os outros?… Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam?
― Já te disse por vezes
que é uma desconfiança tua; todos te querem e te respeitam como devem.
Isabel abanou
tristemente a cabeça.
― Vai-te bem o
consolar-me; mas tu mesma tens visto, se eu tenho razão.
― Ora, um momento de
zanga da minha mãe…
― É um momento bem
longo, Cecília! Respondeu a moça com um sorriso amargo (ALENCAR, 2009, p. 40).
Assim, a relação entre Isabel
e os membros da família Mariz é desconfortável por ser bastarda. Entretanto, no
final do romance, as relações sociais estabelecidas com a família Mariz são
extintas, pois a casa de D. Mariz é atacada pelos aimorés, restando apenas Peri
e Cecília, que fogem.
Desse modo, o romance sugere
que o indígena e a “virgem” poderão ter uma relação mais próxima, pois o amor
de Peri é evidente e Cecília, apesar de não demonstrar sentir o mesmo durante a
maior parte do enredo, parece mudar atitude quando, no último capítulo, o
narrador afirma que a vida da personagem:
[…] estava mudada: a
desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda
confuso ia talvez completar a transformação da mulher.
Em torno dela tudo se
ressentia dessa mudança; as cores tinham sons harmoniosos, o ar perfumes
inebriantes, a luz reflexos aveludados, que seus sentidos não conheciam.
Uma flor, que antes era
para ela apenas uma bela forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e
palpitava; a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras,
murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis, notas místicas que
ressoavam no seu coração (ALENCAR, 2009, p. 297).
Mesmo que o narrador não dê
certeza de que esse sentimento irá “completar a transformação da mulher”, o
trecho mostra que Cecília começa a ver beleza nas coisas que não via antes, a
partir do que podemos desconfiar que isso é paixão e/ou amor por Peri. Além
disso, os últimos trechos mostram mais proximidade entre os dois personagens:
Ela embebeu os olhos
nos olhos do seu amigo, e lânguida reclinou sua loura fronte.
O hálito ardente de
Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da
virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como
as asas purpúreas de um beijo soltando o voo” (ALENCAR, 2009, p. 316).
Tal proximidade, reforçada
pelos lábios da “virgem”, indica que os dois estão propensos a ter uma relação
mais íntima, criando a união entre o selvagem e o civilizado, os quais darão
origem aos brasileiros.
Considerações
finais
Este artigo mostrou que Alencar sempre teve preocupação em
retratar a dinâmica entre a natureza e a civilização, seja em obras críticas,
como em carta sobre A confederação dos
Tamoios, ou em obras literárias, como em O tronco do ipê ou em obras indianistas, como Iracema e O guarani.
Essa preocupação serve a propósitos nacionalistas, em que o
autor procura, por meio da exaltação das qualidades de seu país, criar uma
identidade em que os brasileiros se enxerguem como um povo dotado de uma
história e de uma cultura próprias.
Assim, Alencar, a exemplo dos românticos europeus, com seus
cavaleiros medievais, tenta criar um passado mítico para o Brasil. Porém, como
o Brasil não teve Idade Medieval, a solução encontrada pelo autor, ao escrever O guarani, é voltar ao passado e
encontrar no indígena um “cavalheiro português” e, além disso, descrever os
elementos da natureza a partir de termos de uma “realidade europeia”,
proveniente da Idade Medieval.
Desse modo, O guarani
se configura como metáfora dessa tentativa de conciliação entre natureza e o
indígena e a civilização, visto que o processo colonizatório criou descendentes
a partir da miscigenação dos brancos com os índios e, assim, no pensamento
indianista, a nação surge.
Por meio do romance, Alencar também revela seu pensamento
conservador, seu ideal de nação: tanto elementos da natureza quanto da
civilização mostram uma hierarquia. Em relação à natureza, termos da hierarquia
europeia são usados para descrevê-la. Nos elementos da civilização, o homem é
estático, não muda de posição social e assim tudo funciona. Peri, o herói, é
encurralado nesse ideal de conciliação das diferenças sociais. Ao mesmo tempo
que é livre, nas florestas, é escravo de Cecília sendo, portanto, escravo da
civilização (já que Cecília faz parte da civilização). O amor de Peri faz com
ele proteja a personagem, o que dá vida dupla para o indígena: no “castelo
feudal” e na natureza.
A apresentação que Alencar faz dos elementos da civilização
e natureza demonstra suas ideias sobre a formação da nação brasileira, em que
os brancos, colonizando o Brasil, acabam por se unir aos índios, dos quais
nascerão os futuros brasileiros.
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