Era uma segunda-feira pós-feriado na Translog Express. A impressora havia voltado a engasgar, a cafeteira parecia cuspir óleo diesel, e os ânimos no setor de atendimento estavam suspensos por um fio de paciência.
Adalberto, como sempre, era o móvel humano da sala: ninguém tropeçava nele porque ninguém percebia sua presença. No crachá, o nome desbotado era só um lembrete de que ele ainda estava oficialmente ali.
Um mês havia se passado desde o escândalo Douglas-Breno, que ainda ecoava em cochichos no refeitório. Mas como toda tragédia de firma, acabara substituída por planilhas atrasadas e bolos secos no aniversário de setor.
Naquela manhã, quem chamava atenção era Flavinho do almoxarifado. Jovem, metido a galanteador, com gel demais no cabelo e botão de menos na camisa. Dizia-se “bom de lábia” e “fera no toque da conquista”.
O celular de Flavinho estava destravado e abandonado em cima de uma pilha de formulários. E era aí que Adalberto, eterno maestro do caos invisível, encontrava sua batuta.
Aberto no WhatsApp. O grupo: "Equipe Translog – Oficial 🚛"
44 membros. Supervisores, RH, até a dona da empresa, Dona Márcia — casada, respeitadíssima, do tipo que fala “querido” e demite com um aceno.
Adalberto respirou fundo. Digitou com precisão cirúrgica:
“Dona Márcia, eu não aguento mais esconder…
Seus olhos me perseguem no estoque, seus passos ecoam no meu coração.
Sei que é casada, mas a paixão não respeita aliança.
Vamos conversar, só nós dois. Um vinho, talvez.
Flávio.”
Mandou.
No grupo da firma.
Com emoji de coração, taça de vinho, e uma rosa.
Silêncio. Por três segundos.
Depois:
— “????????”
— “É sério isso?”
— “Tem criança lendo aqui”
— “É hackeado ou surto?”
— “Rapaz…”
Dona Márcia digitando...
Digitando...
Digitando...
Parou.
Digitando de novo.
A tensão dava pra cortar com colher de plástico.
A mensagem veio:
“Flávio, sugiro que se dirija imediatamente ao RH. E, por gentileza, use camisas com botões fechados.”
Seguiu-se uma enxurrada de reações: carinhas chorando de rir, gifs de explosões, alguém mandou um áudio imitando violino triste.
Flavinho, que voltava do banheiro mascando chiclete com a confiança de um pavão, parou ao ver os olhares. Pegou o celular. Leu.
Empalideceu.
— EU NÃO MANDEI ISSO!
— Foi você mesmo, irmão. Tá no grupo oficial, tá assinado, tem até flor!
Flavinho foi chamado ao RH sob o olhar congelado de Márcia. Saiu meia hora depois com olhos vidrados, camisa fechada até o pescoço e sem gel no cabelo.
Na sala, Adalberto retornou à sua mesa. Abriu a planilha “itens vencidos 2023”.
Sorriu.
Como diria seu autor favorito, Millôr Fernandes:
“A vida é uma peça de humor. O problema é que quase ninguém acha graça enquanto está no palco.”
Mas Adalberto achava. Achava muita.