domingo, 15 de junho de 2025

O Invisível e a Proposta no Grupo Corporativo

 Era uma segunda-feira pós-feriado na Translog Express. A impressora havia voltado a engasgar, a cafeteira parecia cuspir óleo diesel, e os ânimos no setor de atendimento estavam suspensos por um fio de paciência.

Adalberto, como sempre, era o móvel humano da sala: ninguém tropeçava nele porque ninguém percebia sua presença. No crachá, o nome desbotado era só um lembrete de que ele ainda estava oficialmente ali.

Um mês havia se passado desde o escândalo Douglas-Breno, que ainda ecoava em cochichos no refeitório. Mas como toda tragédia de firma, acabara substituída por planilhas atrasadas e bolos secos no aniversário de setor.

Naquela manhã, quem chamava atenção era Flavinho do almoxarifado. Jovem, metido a galanteador, com gel demais no cabelo e botão de menos na camisa. Dizia-se “bom de lábia” e “fera no toque da conquista”.

O celular de Flavinho estava destravado e abandonado em cima de uma pilha de formulários. E era aí que Adalberto, eterno maestro do caos invisível, encontrava sua batuta.

Aberto no WhatsApp. O grupo: "Equipe Translog – Oficial 🚛"
44 membros. Supervisores, RH, até a dona da empresa, Dona Márcia — casada, respeitadíssima, do tipo que fala “querido” e demite com um aceno.

Adalberto respirou fundo. Digitou com precisão cirúrgica:

“Dona Márcia, eu não aguento mais esconder…
Seus olhos me perseguem no estoque, seus passos ecoam no meu coração.
Sei que é casada, mas a paixão não respeita aliança.
Vamos conversar, só nós dois. Um vinho, talvez.
Flávio.”

Mandou.
No grupo da firma.
Com emoji de coração, taça de vinho, e uma rosa.

Silêncio. Por três segundos.

Depois:
— “????????”
— “É sério isso?”
— “Tem criança lendo aqui”
— “É hackeado ou surto?”
— “Rapaz…”

Dona Márcia digitando...
Digitando...
Digitando...
Parou.
Digitando de novo.
A tensão dava pra cortar com colher de plástico.

A mensagem veio:

“Flávio, sugiro que se dirija imediatamente ao RH. E, por gentileza, use camisas com botões fechados.”

Seguiu-se uma enxurrada de reações: carinhas chorando de rir, gifs de explosões, alguém mandou um áudio imitando violino triste.

Flavinho, que voltava do banheiro mascando chiclete com a confiança de um pavão, parou ao ver os olhares. Pegou o celular. Leu.
Empalideceu.
— EU NÃO MANDEI ISSO!

— Foi você mesmo, irmão. Tá no grupo oficial, tá assinado, tem até flor!

Flavinho foi chamado ao RH sob o olhar congelado de Márcia. Saiu meia hora depois com olhos vidrados, camisa fechada até o pescoço e sem gel no cabelo.

Na sala, Adalberto retornou à sua mesa. Abriu a planilha “itens vencidos 2023”.
Sorriu.
Como diria seu autor favorito, Millôr Fernandes:

“A vida é uma peça de humor. O problema é que quase ninguém acha graça enquanto está no palco.”

Mas Adalberto achava. Achava muita.

O Invisível e o Amor Que Não Era Dele

Era uma tarde sem importância no escritório da Translog Express — empresa que entregava papéis com a mesma seriedade com que seus funcionários matavam tempo no cafezinho. O ar-condicionado tossia. A máquina de café gotejava um resto de expresso sem alma.

Adalberto, como sempre, passava despercebido entre as baias. Cabelos ralos, camisa bege, um crachá gasto preso com fita adesiva. Trabalhava no setor de cadastro, o tipo de função que ninguém sabe exatamente o que faz, mas que, quando falta, alguma coisa trava.

Sentado a duas baias dele, estava Douglas. Terno azul-marinho apertado, perfume forte, e aquele tipo de hétero que começa frases com “sou casado, mas posso elogiar, né?”. Mais adiante, no financeiro, havia o Breno — camisa polo, barba por fazer e o costume de usar fones mesmo quando não estava ouvindo nada.

Adalberto já sabia: Douglas e Breno não se suportavam, mas mantinham a máscara da cordialidade típica de ambientes onde o RH vigia tudo.

Naquele dia, na hora do almoço, Douglas esqueceu o celular em cima da mesa. Travado, mas não bloqueado — aberto na conversa do WhatsApp com Breno. Uma troca seca de mensagens sobre o rateio do estacionamento.

Adalberto, invisível até para as câmeras de segurança, deslizou até o aparelho. Com um gesto tranquilo, digitou:

“Eu fico te olhando e querendo dizer, mas não tenho coragem. Acho que estou apaixonado. Só queria que você soubesse. Desculpa se for demais.”

Enviou.

Saiu.
Sentou-se novamente e abriu uma planilha qualquer, fingindo revisar CPF.

O caos chegou quinze minutos depois.

Breno, com o celular em mãos, foi até a baia de Douglas. Segurava o aparelho como quem carrega um teste de gravidez positivo.
— Que porra de mensagem é essa?

Douglas, que voltava do almoço mascando chiclete, travou no passo.
— Que mensagem?

— Essa aqui, cara! — estendeu o celular, dedo tremendo.

Douglas leu. Empalideceu. Riu. Depois parou de rir.
— Isso é trote. Tu tá me zoando?

— Zoando? Foi você que mandou!

— Eu? Tá maluco? Eu sou casado, irmão! Tenho filha!

— E eu tenho nojo! Não vem com gracinha, não! Você que me olha torto desde que eu entrei! Tá achando o quê?

A discussão atraiu o setor todo. Teve supervisora gritando “vamos manter o respeito!”, teve gente filmando, teve estagiário indo buscar o RH.

Adalberto apenas levantou os olhos da planilha e suspirou, como quem lamenta a pressa do mundo. Depois se levantou, foi até o filtro, encheu um copo d’água e voltou calmamente, saboreando o espetáculo.

Na semana seguinte, Breno foi transferido pro setor de logística externa. Douglas passou a trancar o celular até pra ir ao banheiro. E o grupo do WhatsApp da firma ficou silencioso por dois dias inteiros.

Adalberto, esse, manteve-se onde sempre esteve: na sombra do canto da sala, entre a impressora sem papel e a planta artificial. Invisível. Mas atento. Esperando a próxima abertura de tela. 

O Invisível e o Amor Rubro-Negro

 Adalberto estava no churrasco de família como quem cumpre expediente. Sentado num canto da varanda, equilibrava o copo de refrigerante morno no joelho e observava os rituais masculinos em volta da churrasqueira: piadas recicladas, tapas nas costas, discussões sobre pênaltis de 2009.

Yuri — o primo — liderava a roda como sempre. Camiseta justa, boné virado pra trás, riso alto e musculatura ostensiva. Havia algo nele que exalava segurança de quem nunca passou uma tarde inteira em silêncio num refeitório.

O celular de Yuri estava largado sobre a mesa de plástico, carregando sob o sol. Uma notificação piscava: "Trem do Mengão🔥⚽".

Adalberto esticou a perna. Não era por vingança. Era por esporte.

Deslizou o dedo, abriu o WhatsApp. Vinte e três marmanjos: amigos, ex-colegas, vizinhos — todos rubro-negros, todos com avatares de jogadores berrando ou taças erguidas.

Digitou com calma, como quem escreve bilhete de despedida:

“Eu te amo. E não é de agora. Tô cansado de esconder. A verdade é que eu amo vocês. Cada um desse grupo. Tô falando sério.”

Coração vermelho. Bandeira do Flamengo. Uma lágrima emoji.

Mandou.

Fechou o app, colocou o celular exatamente como estava, e voltou a observar.

Do outro lado da varanda, Yuri mordeu uma coxa de frango, riu de uma piada sobre o VAR, e então viu a tela acender.

— Que porra é essa? — disse alto, parando de mastigar.

Silêncio no grupo da churrasqueira. Silêncio na varanda. Silêncio até na casa da vizinha.

O grupo "Trem do Mengão" respondeu em segundos:

— “Kkkkkkkkkk que isso, irmão?”
— “Tá falando sério ou é pegadinha?”
— “É do jogo ou do coração?”
— “Fica tranquilo, Yuri. Eu também te amo. 😂”
— “Agora tudo faz sentido... aquele dia do churrasco em 2021... 👀”
— “Já pode trocar o nome do grupo pra ‘Amor entre Rubros’”
— “Te entendo, mano. Esse time emociona mesmo.”
— “Aí eu choro 😢🔥”

Yuri ficou vermelho. Primeiro de confusão, depois de raiva.
— Alguém pegou meu celular, véi. Quem foi o filho da...?

Olhou em volta. Ninguém reagiu. Alguns riam abafado. Outros evitavam o olhar. Yuri encarou Adalberto por um segundo — aquele primo calado, o que trabalha com "coisa de computador", o que nunca é marcado em foto nenhuma.

Adalberto apenas sorriu, muito levemente. E deu outro gole no refrigerante.

Yuri saiu bufando, celular em punho, dizendo que ia sair do grupo e criar outro “com gente normal”.

No fim da tarde, Adalberto ajudou a guardar as cadeiras. Saiu cedo, como sempre. Sem levantar suspeitas. Sem dizer nada. Mas, naquela noite, dormiu com o telefone no peito, ainda rindo do novo nome do grupo:

"Mengão e Emoção ❤️🖤"

E uma nova mensagem fixada:

“Sentimento é pra quem tem raça.”

O Menino Invisível e a Festa das Cabeças Trocadas

 Na quarta série da Escola Municipal Prof.ª Efigênia Vasconcelos, Adalberto já era um vulto em miniatura. Não sujava a lousa, não levava bilhete na agenda e nunca esquecia a régua — mas ninguém lembrava dele nas rodas de perguntas nem nas fotos da gincana. Na chamada, o silêncio entre o “Bruno” e a “Camila” era o único sinal de que ele existia.

Por isso, Adalberto ouvia. Observava. E tramava.

Tudo começou numa sexta-feira de avaliação de Ciências. Dona Carmem explicava, com sua voz de desânimo histórico, as diferenças entre répteis e anfíbios. Enquanto isso, Adalberto testava a elasticidade de um estilingue feito com a liga de borracha de um estojo da Turma da Mônica. Não tinha alvos definidos — apenas convicção.

A primeira vítima foi Jeferson, o popular. O elástico acertou a nuca dele justo quando escrevia “pele úmida” na resposta sobre o sapo-cururu. Jeferson virou-se num salto, olhos faiscando, e apontou para Tainá, que estava com um lápis de ponta afiada e cara de inocente ofensiva.
— Foi ela!

A confusão começou ali, com Tainá em lágrimas, Jeferson jurando por todos os santos e Dona Carmem gritando um “Ninguém vai sair pra recreio!” tão definitivo que as janelas pareceram embaçar.

Mas Adalberto queria mais.

No dia seguinte, aproveitando o intervalo, plantou um chiclete mascado (dos outros, é claro — ele era metódico demais pra mascar qualquer coisa) no encosto da cadeira de Felipe, o menino que tinha alergia a injustiças e usava fichário cor-de-limão. Felipe sentou, grudou, levantou aos gritos:
— Isso é coisa da Isadora! Ela sempre tem chiclete!

Isadora, que de fato mascava como uma secretária dos anos 90, foi pega de calça curta. Quando tentou explicar, Felipe já listava crimes antigos dela, como uma promotoria descontrolada: "Ela colou na prova de matemática! Ela quebrou o apontador do prof. Danilo! Ela riscou o cartaz da dengue!"

Mais uma leva pra diretoria.

Adalberto, sentado no seu canto, abria discretamente um pacote de bolacha cream cracker — que ninguém pedia, pois todos achavam que ele levava por falta de opção.

A glória veio com a “atividade da cabeça”. A professora trouxe máscaras de papel machê para os alunos pintarem. O plano de Adalberto foi simples e cruel: trocou, na hora do recreio, os nomes colados embaixo das máscaras. A de Jeferson (pintada com escamas verdes e dentes afiados) foi parar com Camila. A de Camila (rosa com glitter e uma frase motivacional) foi parar com Bruno, que se recusava a usar rosa desde a Educação Infantil.

Na hora da entrega, o caos foi absoluto. Choro, ranger de dentes, gritos de “roubaram a minha identidade!”. Teve até um começo de vômito emocional.

Resultado: cinco alunos na diretoria. A professora, com enxaqueca. O diretor, com uma pasta nova de advertências.

E Adalberto?

Fez um desenho silencioso: um sapo sorrindo, com óculos escuros, embaixo de um sol que brilhava só pra ele.

No final da aula, pegou sua lancheira de couro sintético e foi embora devagar, com a calma dos inocentes. Ou dos invisíveis. Que, às vezes, são os mais perigosos.

O invisível e o tapete de fundo

 Desde a infância, Adalberto suspeitava que era invisível. Não como nos livros de capa mole que lia embaixo do beliche, mas invisível à maneira dos que passam pela sala e ninguém percebe. Gente que entra num elevador e ninguém se incomoda em apertar o botão por ela. Com o tempo, Adalberto refinou essa habilidade: aprendeu a caminhar entre as mesas da repartição sem provocar uma só interrupção no teclar dos teclados.

Na repartição — Setor de Ajustes e Inconsistências Contábeis do município — era invisível até para o chefe, que certa vez o passou direto para pedir café a um estagiário. Mas Adalberto não se ofendia. O invisível, dizia para si mesmo, tem o privilégio de andar pelo mundo como um gato de biblioteca: sem ser notado, mas sempre presente.

Foi numa terça-feira abafada que decidiu colocar sua invisibilidade à prova. Havia um colega novo, Wellington, desses que trazem marmita vegana e usam palavras como “sinergia”. Tinha voz de rádio comunitária e mania de organizar os papéis dos outros, o que para Adalberto era um crime equivalente a danificar um vitral de igreja barroca.

Primeiro, Adalberto trocou o atalho do teclado do Wellington. A tecla que antes salvava, agora abria um GIF animado de um gato pelado dançando ao som de um tambor distante. Ninguém percebeu — até a sexta vez em que o som escapou durante a videoconferência com a secretária adjunta.

Depois veio a segunda fase: Adalberto, em seu manto de invisibilidade metafísica (e um crachá virado ao contrário), entrou sorrateiro na máquina do rapaz e trocou o papel de parede. No lugar da foto do seu golden retriever chamado Dharma, apareceu um banner de letras garrafais:
“TODOS AQUI SÃO INÚTEIS, MENOS EU.”
Fonte Comic Sans. Fundo neon. Um clássico do desprezo.

Na manhã seguinte, o setor era só cochicho. Dona Zuleica, que falava com as plantas, olhava Wellington como se ele tivesse cuspido no vaso da samambaia. E foi quando Adalberto, ainda invisível, preparou a cereja do bolo: alterou a assinatura automática do e-mail do rapaz para incluir a frase:
“Favor não me incomodar com problemas de gente medíocre.”

O e-mail foi enviado à chefia. À ouvidoria. À vice-prefeitura. E, por engano, à mãe de Wellington, que mantinha o e-mail do filho salvo desde os tempos de feira de ciências.

A reunião extraordinária aconteceu numa sexta. Os chefes chamaram Wellington para uma “conversa”. Ele entrou com seu potinho de lentilha, saiu com o aviso de suspensão. Ninguém o viu mais.

Adalberto, por sua vez, permaneceu. Invisível, como sempre. E agora com uma sala só sua. Fez questão de trocar o papel de parede do computador novo por um pôr-do-sol em tons tristes. Apenas para lembrar que, por vezes, a sombra não vem das nuvens — mas das figuras que não vemos.

E foi assim que o invisível ganhou um nome no crachá. Ainda que ninguém o olhasse nos olhos.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Responsabilidade com o Responsável

 Ser humano é mais do que viver para si mesmo. É também assumir o papel de guardiões do que nos foi confiado — animais, plantas, a terra. Temos o dom da razão, e com esse dom, vem a responsabilidade de cuidar, preservar e fortalecer a vida ao nosso redor.

Nosso cão não é apenas um companheiro. Ele é um amigo, um ser que depende de nós para viver com dignidade. E por isso, devemos ter responsabilidade com esse responsável — aquele que nos ama sem exigir nada, que nos protege, que se alegra com a nossa presença. O mínimo que devemos a ele é zelo, cuidado e consciência.

Não é ético forçar raças como os pugs, por exemplo, a se multiplicarem com genes que provocam sofrimento: narizes achatados, problemas respiratórios, dificuldades motoras. Isso é ir contra a natureza e contra o próprio princípio da criação. Criar um ser para viver doente é desumano. A genética deve ser usada para fortalecer, não para enfraquecer.

Da mesma forma, com as plantas que comemos, devemos cultivar com respeito e sabedoria. Plantas saudáveis nutrem melhor, resistem às pragas, enriquecem o solo. Mas quando manipulamos a natureza unicamente por lucro ou por vaidade, criamos frutos que duram mais na prateleira, mas não nutrem como deveriam. Estamos alimentando o corpo com menos do que ele precisa e o espírito com menos ainda.

A responsabilidade verdadeira é silenciosa, paciente, muitas vezes invisível. Ela está no criador que seleciona cães com boa respiração e estrutura forte. No agricultor que respeita a terra e escolhe sementes rústicas e vivas. Está em cada um que cuida do que é vivo como se cuidasse de um filho.

Porque no fim das contas, é isso mesmo: somos pais e mães da natureza domesticada. E assim como um pai deve ensinar e fortalecer o filho, nós devemos fortalecer os seres sob nossos cuidados.

O mundo não precisa de mais controle. Precisa de mais consciência do lugar que ocupamos. Precisamos voltar a agir como faziam nossos avós no campo: com sabedoria passada adiante, com respeito ao ritmo das coisas, com responsabilidade por cada vida sob nosso teto — ainda que essa vida seja de quatro patas ou de raízes fincadas na terra.

Se somos humanos, devemos ser também humanizadores. Cuidar para que cada ser que criamos ou cultivamos tenha não só vida, mas vida digna.

Quando a Genialidade Esquece da Vida

 Nietzsche, Schopenhauer, Cioran — três nomes imensos, pensadores de profundidade incontestável, cujas ideias atravessaram séculos. Mas há algo curioso, talvez até trágico, que une esses três gênios: nenhum deles teve filhos.

Nietzsche declarou a “morte de Deus”, e nisso ele não estava necessariamente errado. A modernidade, de fato, afastou-se dos símbolos, dos ritos e da transcendência. Mas quando se diz que Deus morreu, a pergunta mais profunda não é sobre o divino em si, mas: o que colocaremos no lugar? O que sustenta o sentido da vida quando os pilares tradicionais ruem?

Historicamente, comunidades tradicionais e religiosas sempre souberam responder a essa pergunta: a vida tem valor porque vem de algo maior, e porque deve continuar. A transmissão da vida, através dos filhos, era não só um instinto, mas um dever moral, uma parte natural da existência. E era ali, muitas vezes, que se encontrava a alegria, o trabalho com propósito, a memória e o futuro.

Mas isso não significa que uma comunidade secular esteja condenada ao vazio. Não é a religião em si que garante o sentido — é a cultura que valoriza a vida, que incentiva a fecundidade, que compreende que viver é também gerar, cuidar e transmitir. É isso que falta hoje: uma ideologia fecunda, uma visão de mundo que celebre a continuidade humana sem depender de dogmas.

Schopenhauer enxergava o sofrimento com precisão, mas não soube apontar o caminho para superá-lo: não é negando a vida que ela melhora, mas criando raízes. Cioran esculpiu o desespero com beleza, mas nunca ousou construir. Nietzsche sonhou com o “além-do-homem”, mas sem filhos, sem legado, sem casa, o além vira negação — não construção.

A verdadeira lucidez não está em apenas denunciar o caos. Está em responder a ele com coragem fecunda. Está em formar famílias, em transmitir valores, em plantar árvores que talvez não veremos crescer — mas que outros verão.

O que falta à modernidade não é fé em Deus, mas fé na vida. Falta cultura que celebre o nascimento. Falta orgulho em formar uma família. Falta política que favoreça o crescimento, não o encolhimento humano. Falta poesia que fale dos filhos. Falta filosofia que abrace o ciclo da vida, e não o lamente.

Que os novos pensadores não cometam o mesmo erro: que pensem, sim — mas que também vivam. Que construam. Que gerem. Que deixem não só livros e ideias, mas pessoas.

Porque no fim, a única filosofia que se sustenta é aquela que faz nascer.

Negar a Fertilidade: Um Ato Contra Si Mesmo

 Há algo profundamente errado quando um ser escolhe, conscientemente, interromper o próprio ciclo natural de vida. Não ter filhos — ou decidir nunca tê-los — pode parecer uma escolha racional e moderna, mas, sob o olhar da natureza e da ordem tradicional das coisas, é um ato de autonegação. Um gesto silencioso, porém radical, contra a própria existência.

É como pegar uma lâmina e se cortar. Como tomar um veneno sabendo que fará mal. Como entrar em uma casa e, voluntariamente, apagar todas as luzes e trancar as portas por dentro.

É como uma árvore que cresce vigorosa, estende seus galhos como braços para os céus — galhos esses que poderiam dar sombra, flores, frutos —, mas que, por vaidade ou confusão, começa a destruir suas próprias sementes. A civilização moderna, com seus galhos de tecnologia e consumo, parece esquecer que sem sementes, nenhuma árvore vive por muito tempo.

Imagine um gato que, por escolha própria, decide se castrar. Um comportamento impensável no mundo natural. Ou um chimpanzé macho que, sem traumas, sem doença, simplesmente se recusa a viver com o grupo, evita as fêmeas e se isola — algo extremamente raro e antinatural. Esse tipo de desvio só ocorre quando há algo profundamente errado no ambiente.

Pense numa formiga operária que se volta contra sua rainha e destrói o ninho — condenando a própria colônia à extinção. Ou numa abelha rainha que, diante das condições ideais, se recusa a botar ovos. Que sentido teria sua existência? Como continuaria a vida no enxame?

Essas comparações, embora simbólicas, ajudam a enxergar o absurdo que se tornou normal: negar a fertilidade como se ela fosse um fardo, e não um dom.

A civilização que rejeita os filhos rejeita o futuro. Está, aos poucos, desligando o motor da própria existência. E o faz de forma voluntária, com discursos sofisticados, mas vazios. É uma geração que quer tudo, menos continuar.

Por isso, negar os filhos é negar a si mesmo. É romper com a própria origem. É escolher o fim, ainda que se esteja cercado de vida.

A natureza não perdoa quem vai contra ela por muito tempo. O ciclo precisa continuar. E toda espécie que perde o instinto de reprodução… simplesmente desaparece.

Quantos Filhos Deveríamos Ter?

 Na natureza, cada espécie segue um ritmo próprio de reprodução. O número de filhotes que cada animal tem não é aleatório: ele reflete a luta pela sobrevivência, a sabedoria do instinto e o equilíbrio da vida.

Os sapos, por exemplo, botam centenas, até milhares de ovos. Desses, nascem girinos, mas a maioria não sobrevive: são predados, secam ao sol ou não chegam à fase adulta. Por isso, precisam gerar muitos para que alguns poucos cheguem à vida adulta. A natureza ajusta: quanto maior o risco de morte, maior o número de descendentes.

Já os macacos — especialmente os primatas como os chimpanzés — vivem em grupos sociais mais complexos e oferecem cuidado materno prolongado. Por isso, o número de filhotes é menor: uma fêmea chimpanzé terá, em média, de 3 a 6 filhotes ao longo da vida. É um número que permite à mãe cuidar, proteger e ensinar cada um. É pouco? Não. É o necessário para que a espécie continue com equilíbrio e dignidade.

E os seres humanos?

Se pensarmos de forma natural, como nossos antepassados viviam, uma mulher que se casasse por volta dos 18 anos, como sempre foi tradicional em muitas culturas, e que não usasse métodos contraceptivos artificiais, teria ciclos férteis até aproximadamente os 45 a 50 anos. Com um intervalo médio de 2 anos entre os partos, poderia, sem dificuldades, ter entre 10 a 14 filhos ao longo da vida. Com perdas naturais que ocorriam no passado (doenças, partos difíceis, mortalidade infantil), esse número se equilibrava.

Assim, uma média de 7 filhos por mulher seria, em um meio natural, algo bastante razoável e até necessário para garantir a continuidade da comunidade e da cultura familiar.

Contudo, na civilização moderna, esse número é visto como um exagero. A mulher é incentivada a adiar o casamento, priorizar estudos e carreira, usar anticoncepcionais e, muitas vezes, não ter filhos ou ter um ou dois no máximo. Tudo em nome de uma suposta liberdade e planejamento.

Mas o que ganhamos com isso?

Hoje temos remédios, vacinas, hospitais, antibióticos. As crianças dificilmente morrem de doenças simples. Isso quer dizer que poderíamos, com segurança, criar uma família numerosa, algo que antigamente era difícil. Mas escolhemos o contrário. O mundo moderno, com toda a sua segurança, está produzindo menos filhos do que nunca.

Não deveríamos nos preocupar?

A taxa de natalidade despenca. Muitos países já veem mais mortes do que nascimentos. As famílias se reduzem a casais solitários, idosos sem netos, crianças sem irmãos. E a solidão cresce, junto com a depressão, os distúrbios mentais, o vazio.

A natureza foi clara em sua lógica: viver é também passar adiante. Ter filhos é mais do que biologia. É legado, continuidade, amor em movimento. E negar esse instinto — por mais civilizados que sejamos — pode nos levar a um caminho frio e sem raízes.

Não seria hora de parar e refletir se o rumo que estamos seguindo é, de fato, o mais humano?

O Instinto Natural de Ter Filhos e a Perda de Sentido na Vida Moderna

Entre os chimpanzés, nossos parentes mais próximos no reino animal, a reprodução não é apenas uma consequência biológica: é parte fundamental de sua existência. As fêmeas têm, em média, de 3 a 6 filhotes ao longo da vida, cuidando intensamente de cada um com dedicação e paciência. Os machos, por sua vez, competem, protegem e se esforçam para deixar descendentes, preservando o ciclo da vida.

Esse mesmo instinto é observado em incontáveis espécies — os pássaros, por exemplo, constroem ninhos com zelo, alimentam seus filhotes e os ensinam a voar. A vida, para eles, é simples e clara: nascer, crescer, reproduzir, proteger a prole, transmitir o legado e, assim, dar continuidade à espécie.

Os seres humanos, por milhares de anos, também viveram em sintonia com esse ciclo natural. Ter filhos era uma bênção, um sinal de continuidade, de força familiar e de propósito. No entanto, a civilização moderna e a globalização têm incentivado um caminho diferente: adiar ou evitar completamente os filhos. A busca por conforto, carreira, consumo e liberdade individual parece ter substituído a missão ancestral da família.

Mas será que esse novo caminho está nos fazendo bem?

Crescem, em proporções alarmantes, os índices de depressão, ansiedade, vazio existencial e perda de sentido na vida moderna. Muitos vivem cercados de tecnologias, distrações e conquistas materiais, mas sentem-se sozinhos e perdidos. O que antes era um instinto claro e natural — formar uma família e gerar vida — agora é muitas vezes visto como um peso ou uma escolha inconveniente.

Essa desconexão com o propósito natural pode ser uma das raízes do sofrimento silencioso que assola tantas pessoas. Afinal, quando se apaga o fogo do instinto de continuidade, sobra o quê? Um mundo artificial, onde tudo parece passageiro e descartável.

Voltar os olhos à natureza — aos chimpanzés, aos pássaros, aos nossos próprios ancestrais — pode ser um chamado para refletirmos. A vida tem mais sentido quando se enxerga o outro, quando se pensa no amanhã e quando se cuida de alguém que depende de nós.

Talvez, no fundo, o que falta ao mundo moderno é justamente isso: relembrar que viemos para amar, cuidar e continuar.

domingo, 8 de junho de 2025

Artigo XX – Da Expansão Justa e Planejada da Terra para Gerações Futuras

 

  • Em uma comunidade fundada sobre os princípios da vida simples, do trabalho digno e da harmonia com a natureza, é natural que, com o tempo, novas famílias se formem e, portanto, seja necessária a aquisição de novas terras.

  • Tal expansão deve se dar com ordem, prudência e responsabilidade, tendo em vista:

    • A preservação do modo de vida rural e autossuficiente;

    • O cuidado com os recursos naturais já existentes;

    • A continuidade das famílias, evitando o êxodo dos filhos por falta de espaço ou meios de subsistência.

  • A aquisição de terras poderá ser feita por:

    • Membros antigos da comunidade que possuam meios;

    • Novos membros interessados em integrar-se, desde que aprovados conforme os critérios estabelecidos pelo Concílio ou órgão comunitário;

    • Parcerias com famílias ou benfeitores que disponham de terras amplas e desejem fundar o núcleo inicial da comunidade.

  • Qualquer pessoa, desde que disposta a seguir os princípios fundadores, pode iniciar uma célula comunitária — não se exige riqueza, mas constância, valores claros e disposição para o trabalho e a partilha.

  • No princípio da formação ou expansão da comunidade, será possível o uso de meios legítimos de divulgação (como folhetos, reuniões, chamadas em redes sociais tradicionais) para recrutar famílias alinhadas com o ideal. Esta divulgação deve evitar a busca massiva ou superficial, e sim visar pessoas verdadeiramente dispostas a abraçar a vida comunitária com seriedade.

  • A expansão nunca deverá ocorrer com o fim de lucro ou domínio de terra, mas sim com o objetivo de manter:

    • A autossuficiência alimentar;

    • O trabalho artesanal e cooperado;

    • O respeito ao espaço natural, à flora e à fauna locais.

  • Cabe ao órgão comunitário deliberar, por ata e com consulta aos anciãos ou fundadores, quais famílias estão aptas a receber ou adquirir novos lotes de terra, com base em sua contribuição, equilíbrio familiar, e comprometimento com os valores da comunidade.

  • Artigo XIX – Do Aproveitamento do Clima Local e da Sabedoria da Permacultura

     

  • A comunidade de Campos da Razão deve trabalhar em harmonia com a terra, os ciclos do tempo e o que a natureza local já oferece. A natureza, quando respeitada, ensina e sustenta.

  • Toda produção deve seguir os princípios da permacultura, ou seja:

    • Usar o que já existe no solo e no clima local;

    • Adaptar-se às estações e aos ciclos naturais;

    • Evitar intervenções artificiais, dispendiosas e desnecessárias.

  • Assim como o corpo humano não deve ser violentado, a terra também não deve ser ferida com práticas brutais ou destrutivas, mas sim compreendida e cuidada com sabedoria, como os antigos faziam com suas hortas, pomares e currais.

  • Exemplo disso são as araucárias, árvores antigas e nobres, que fornecem o pinhão, alimento farto e saudável, além de abrigo para aves e sombra para o gado.

    • Nenhuma araucária poderá ser derrubada para dar lugar a plantações exóticas, casas ou cercas;

    • O pinhão deve ser colhido e aproveitado com gratidão, mantendo-se o respeito à árvore-mãe.

  • As espécies nativas devem ser preservadas, multiplicadas e aproveitadas em tudo que podem oferecer, desde que sem destruição.

    • As plantas medicinais, as frutas do mato, as árvores de madeira dura e os bichos da terra têm papel na manutenção da vida e da cultura da região.

  • O modelo a seguir é o da roça tradicional, pequena, variada e rotativa, onde se plantam legumes, raízes, grãos e frutas juntos, e onde a criação é integrada ao uso da terra com equilíbrio.

  • O trabalho com a terra será sempre mais sábio quando observa antes de agir, e valoriza o que o lugar já tem, em vez de tentar impor modelos alheios, trazidos de fora, que não respeitam o ciclo da vida nem o espírito da terra.

  • Artigo XVIII – Do Uso da Terra e da Medida Justa para a Subsistência

     

  • Em Campos da Razão, a terra é entendida como bem de uso, não de lucro. Seu valor está no sustento que oferece às famílias, e não na extensão, na posse ostensiva ou na ambição de ganho.

  • Nenhuma família necessita de vastas extensões de terra para viver com dignidade, desde que a terra seja bem cuidada, trabalhada com sabedoria e comedimento.

  • O uso da terra deve seguir o princípio da medida justa:

    • Terra suficiente para plantar, colher e alimentar a si e aos seus;

    • Espaço adequado para criar animais úteis ao sustento familiar;

    • Respeito às reservas naturais, cursos d’água e áreas comuns da comunidade.

  • Não será permitida a concentração de terras com o intuito de obter vantagem sobre os demais, nem o acúmulo improdutivo. A terra que exceder a necessidade da família poderá ser redistribuída pelo Concílio ou posta a serviço do bem comum.

  • O modelo defendido não é o do fazendeiro moderno, que planta com o fim de exportar, vender e lucrar, mas sim o do lavrador antigo, que semeia para comer, divide o excedente e honra a terra como se fosse parte do próprio sangue.

  • A produção deve seguir a lógica da subsistência digna, com sobras naturais que possam ser trocadas dentro da comunidade ou armazenadas para tempos difíceis – não para comércio em larga escala com o mundo exterior, que conduz à dependência e à desordem dos valores.

  • O Concílio poderá definir, conforme o solo e o clima locais, qual é a medida justa de terra por família, mantendo a igualdade, a ordem e a capacidade de preservação das gerações futuras.