No célebre aforismo 341 de A Gaia Ciência, Nietzsche introduz a imagem de um demônio que aparece e sussurra:
“Esta vida, tal como você a vive agora e tal como a viveu, terá de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indescritivelmente pequeno e grande em sua vida há de retornar para você, tudo na mesma ordem e sequência…”
É uma passagem poderosa, que Nietzsche usa para propor um teste existencial:
se essa notícia te esmagaria ou te elevaria?
Se te destrói, diz Nietzsche, é porque você ainda não aprendeu a afirmar a vida.
Mas há um problema:
esse teste não funciona no nosso tempo.
E provavelmente nunca funcionou da forma como Nietzsche imaginava.
1. Hoje, saber do eterno retorno não mudaria a vida de quase ninguém
A proposta de Nietzsche só tem efeito moral se o indivíduo realmente acreditar que sua vida ocorrerá infinitas vezes — e se essa crença for capaz de mudar comportamento.
Mas na prática:
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As pessoas vivem buscando prazer, estabilidade, felicidade e realização.
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As pessoas não moldam o comportamento com base em “eternidade” ou “destino”.
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Em nosso mundo secularizado, quase ninguém estrutura sua vida em torno de crenças metafísicas profundas.
Ou seja:
Descobrir que a vida vai se repetir infinitamente não altera o cotidiano moderno.
Porque o cotidiano moderno é guiado por:
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objetivos imediatos,
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bem-estar,
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escolhas pessoais,
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e não por julgamentos eternos.
2. A comparação com religiosos é reveladora — e mostra o limite da proposta
Nietzsche achava que o eterno retorno funcionaria como o oposto do cristianismo:
um “teste” para afirmar esta vida, não uma promessa sobre outra.
Mas veja a ironia:
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Nem mesmo as pessoas religiosas, hoje, mudam completamente o comportamento por causa da crença no céu ou no inferno.
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A maioria crê superficialmente, mas vive normalmente — trabalha, se diverte, erra, acerta, segue a vida.
Se nem a promessa de consequências eternas, baseada em doutrinas sagradas, muda profundamente o comportamento da maioria…
por que mudaria a ideia de repetir a vida infinitamente?
O eterno retorno só teria força sobre pessoas com uma religiosidade intensa — uma minoria hoje, e não tão comum nem no século XIX.
3. No tempo de Nietzsche, o cenário era diferente — mas não muito
Nietzsche escreveu num contexto europeu:
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ainda fortemente cristão,
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mas já vivendo um declínio da fé tradicional,
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e entrando num mundo mais científico, racional e materialista.
Então sua ideia talvez tivesse mais impacto psicológico em 1880 do que teria em 2025.
Ainda assim:
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a própria Europa da época já não vivia guiada por dogmas religiosos,
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e Nietzsche só esperava que poucos — os “fortes”, os criadores de valores — passassem no teste.
Ou seja, mesmo no contexto dele, a ideia não era para “a maioria”.
4. O grande ponto: o eterno retorno de Nietzsche funciona como metáfora, não como força real
O teste do demônio é filosófico, não prático.
Mas Nietzsche tenta apresentá-lo como uma espécie de exame de consciência:
“Se essa ideia te esmagaria, então tua vida não vale ser vivida.”
Isso remete à dimensão moral do cristianismo (“como você vive perante Deus?”), que Nietzsche tenta substituir pela afirmação da vida (“como você vive perante você mesmo?”).
Mas na prática:
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O demônio não muda ninguém.
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As pessoas continuam vivendo como querem.
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A maioria jamais reorganizaria a vida por causa de um critério abstrato, infinito e especulativo.
É o mesmo problema que se aplica aos religiosos de hoje:
há crença, mas não prática intensa.
Conclusão: o demônio de Nietzsche não sobreviveria ao mundo atual
O “demônio” do eterno retorno é uma metáfora brilhante, mas não tem força transformadora real hoje — nem para a maioria das pessoas do século XIX.
Porque:
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O ser humano moderno vive orientado pelo presente, não pela eternidade.
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Mesmo crenças fortes (céu, inferno) já não mudam comportamentos drasticamente.
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A vida contemporânea é prática, não metafísica.
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A maioria busca apenas viver bem — e isso não mudaria com a repetição eterna.
O eterno retorno, como experimento psicológico, é interessante.
Como força existencial, porém, é inócuo para quase todos nós.
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